quinta-feira, 23 de junho de 2016

BREVÍSSIMAS LINHAS SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DA DELEGAÇÃO DE PODER: a questão das normas de organização ou estrutura

À pergunta "pode a lei delegar ao decreto o regramento de matéria de sua competência?", só havia uma resposta no direito constitucional positivo brasileiro: a negativa. Tal postura negativa se prendia ao fato de o art.6º, par.ún. da CF/67 com a Emenda nº 01/69, a exemplo do § 2º do art. 36 da CF/46, vedar a qualquer dos poderes delegar atribuições, vale dizer, era interditado ao Poder Legislativo delegar ao Executivo atribuição sua, deixando para ser regrado por decreto o que era para sê-lo por lei. Tal proibição restou consolidada na psiquê de nossos juristas, inobstante a Constituição de 1988 não tenha reproduzido norma semelhante àquela apontada. De sorte que, no atual sistema constitucional pátrio, não houve reprodução manifesta da proibição de delegar atribuições entre Poderes, ficando para o intérprete o desafio de descobrir, no texto constitucional, se permaneceu a tradição do impedimento de delegação de poderes, ou se, ao revés, o novo regime constitucional trouxe tratamento novo à matéria.
Os autores que têm tratado do assunto, ainda que an passant, mantêm-se firme no entendimento de que a delegação de poderes continua sendo vedada, ainda que o texto constitucional não o tenha feito expressamente. José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª.ed., Malheiros, p. 101 e 102), em sua magnífica cátedra, argumenta nesse sentido: "As Constituições anteriores estabeleciam o princípio da divisão de poderes, especificando que era vedado a qualquer dos poderes delegar atribuições, e quem fosse investido na função de um deles não poderia exercer a de outro, salvas as exceções nelas previstas. Essas especificações realmente são desnecessárias, até porque a Constituição, agora como antes, estabelece incompatibilidade relativamente ao exercício de funções dos poderes (art. 54), e porque os limites e exceções ao princípio decorrem de normas que comporta pesquisar no texto constitucional" (grifei).
Em que pese o relevo do pensamento deste emérito constitucionalista, as especificações dantes existentes não são tão desnecessárias como lho pareceu. Em verdade, não resta dúvidas que o Poder Executivo não pode legislar sobre todas as matérias, senão aquelas que não lhe foram interditadas pelo texto constitucional, através de medidas provisórias ou leis delegadas. Entrementes, o excesso legislativo acaso praticado pelo Executivo não seria fruto de delegação indevida, mas de desautorizada usurpação de poderes, quebrando o princípio insculpido no art.2º da CF/88. Mas a questão aqui debatida não é essa. O problema está em saber-se se o Poder Legislativo pode, através de lei, deixar o regramento de matéria de âmbito legal para ser procedida por decreto, em delegação de atribuições suas para outro poder. Portanto, não se trata de usurpação, mas de delegação querida e consentida de poderes (= atribuições).
Para bem delimitar a questão, evitando argumentos improcedentes, é importante frisar que o fato de a Constituição Federal ter limitado a atividade legiferante do Poder Executivo às medidas provisórias e leis delegadas, nos estreitos lindes fixados, não resolve a questão. Poderia parecer ao incauto que tais delegações seriam as únicas permitidas constitucionalmente, com o quê estaria solucionada a questão posta. Todavia, o problema prende-se, e ganha em importância, quando se tem em vista que a Constituição outorga competência ao Chefe do Poder Executivo para expedir decretos e regulamentos para fiel execução da lei, bem como para dispor sobre a organização e o funcionamento da administração, na forma da lei (art. 84, incs.IV e VI). Ora, pode a lei permitir ao Poder Executivo a expedição de decreto normatizando ex novo sobre determinada matéria de competência legal?. Para responder a indagação fora redigido o art. 6º, § único, da CF/67. Por isso, parece-nos equivocado o pensamento de José Afonso da Silva, na passagem citada, quando entendeu desnecessária a reprodução desse preceito na novel Carta, pois o imbróglio surgido deveu-se ao silêncio do Constituinte.
Buscando encontrar na Constituição de 1988 os limites à delegação de poderes, Carlos Ari Sundfeld (Direito Administrativo Ordenador, Malheiros, p.32 e segts) ensina: "Poder-se-ia argumentar, em contrário, que o art. 5º, inc.II, da Constituição não exige tanto. Não dispõe ele que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão por comando legal: quer apenas que ninguém seja constrangido senão em virtude de lei. Bastaria assim a lei conferir genericamente o poder ao administrador para que as normas que este viesse a editar encontrassem conforto constitucional. Mas o problema se reconduz aqui à impossibilidade de delegação de funções entre Legislativo e Executivo. Em outras palavras,a interpretação do art. 5º, II, requer necessariamente a consideração do limite a partir do qual se incidiria em inconstitucionalidade por delegação indevida do poder de legislar. Ademais, ainda que não se atentasse para essa pauta, isso não infirmaria a exigência, feita casuisticamente pela Constituição, de que a própria lei - e não o administrador, com base em lei - defina diretamente os condicionamentos dos direitos subjetivos, ou os deveres a serem impostos aos indivíduos, ou as sanções, ou as políticas públicas". (p.35 e 36, com grifos meus)
Entende Carlos Ari Sundfeld, então, que a proibição à delegação de poderes persiste na novel Constituição, mercê dos princípios da separação dos poderes e do Estado de Direito (p.34). Como se vê, o princípio da indelegabilidade de poderes ( ou atribuições) passou a ser retirado, como aparente consectário lógico, do princípio da separação dos poderes. Ora, o raciocínio deve ser justamente às avessas: só se é possível falar em delegação de poder porque os Poderes estão separados. Se assim não fosse, não havia por que se discutir sobre a possibilidade ou não da delegação de atribuições dos Poderes constituídos. Há, pois, na argumentação acima transcrita um vício lógico intransponível, verdadeira petição de princípio. O princípio da separação de poderes não serve de biombo para os malabarismos argumentativos dos que ainda guardam na psiquê o proibitivo do § único do ant. 6º da CF/67.
O que se observa nesses argumentos citados é um apego demasiado ao anterior sistema constitucional, sem atender às modificações havidas com a Carta de 1988. E para o jurista não há outro campo empírico de observação, quando do seu exercício interpretativo, que não o sistema normativo vigente. Como bem enunciou José Souto Maior Borges (O Direito como fenômeno lingüístico..., inCiência Feliz, Fundação de Cultura do Recife, p. 132): "(...) se as normas jurídicas têm âmbitos de validade delimitados, as proposições descritivas dessas normas terão igual âmbitos de referibilidade limitados pelas próprias normas, ou seja, o objeto normativo que descrevem. Se extrapassa o seu âmbito de referibilidade, a proposição a rigor não descreve o ordenamento. É o principio da coextensividade entre âmbitos de validade normativa e âmbitos de referibilidade doutrinária" (grifei).
A dogmática jurídica tem como ponto de partida do seu pensar o próprio ordenamento jurídico vigente. Não pode o intérprete ficar condicionado a normas revogadas, e pois expulsas do mundo jurídico, na descrição das proposições prescritivas em vigor, pois assim sua interpretação perde sua validade empírica, qual seja, a referência ao direito positivo. Por isso, é metodologicamente errado enfrentar o problema da delegação de poderes tendo em vista a Carta de 67, tanto mais quando se sabe que a Constituição do Império e a Constituição de 1891 não continham a vedação às delegações, tal qual a Carta de 1988.
Assim, à falta de norma geral expressa sobre a vedação de delegação de atribuições entre os Poderes, entendo que juridicamente não há impedimentos a que as delegações de poderes ocorram, a não ser quando manifestamente vedadas pela própria Constituição. Nesse caso, cabe ao intérprete demonstrar, no texto constitucional, tais vedações, pesquisando casuisticamente. Nada obstante, antes de traçarmos, de acordo com a Carta, algumas vedações sobranceiras de delegação de poderes, tentemos fixar o contorno contenutístico dessa expressão, tendo em vista tratar-se de um conceito jurídico indeterminado, bem como o âmbito de sua circunscrição: a delegação de poderes existente do Legislativo para o Executivo.
Celso Antônio Bandeira de Mello (Ato Administrativo e Direito dos Administrados, RT, 1981, p. 97/98) ensina: "Há delegação toda vez que a lei remete ao executivo a criação das regras que configuram o direito ou que geram a obrigação, o dever ou a restrição à liberdade. Isto sucede quando fica deferido ao regulamento definir por si mesmo as condições ou requisitos necessários ao nascimento do direito material ou ao nascimento da obrigação, o dever ou a restrição. Ocorre, mais evidentemente, quando a lei faculta ao regulamento determinar obrigações, deveres, limitações ou restrições que já não estejam previamente definidos e estabelecidos na própria lei".
Não há dúvidas que a definição analítica de Celso Antônio Bandeira de Mello é insuficiente, pois apenas entende existir delegação de poderes quando a norma de conduta deixa de ser elaborada pela lei para sê-la pelo decreto (= regulamento). Ocorre que as delegações não se limitam às normas de conduta, podendo se dar também em normas de organização ou estrutura. Como bem expõe o professor italiano Norberto Bobbio (Teoria del Ordenamiento JurídicoinTeoria General del Derecho, editorial Temis, p. 151): "(...) En todo ordenamiento, junto a una norma de conducta, existem otros tipos de normas, que se suelen Ilamar normas de estructura o de competencia. Son aquellas normas que no prescriben la conducta que se debe o no observar, sino que prescriben las condiciones y los procedimentos mediante los cuales se dictam normas de conducta válidas. Una norma que ordena conducir por la derechá es una norma de conducta; una norma que estabelece que dos personas están autorizadas para regular sus proprios intereses en un cierto âmbito mediante una norma vinculante y coactiva, es una norma de estructura, en cuanto non determina una conducta, sino que fija las condiciones y los procedimientos para producir normas válidas de conducta".
As normas de organização são aquelas que não prescrevem condutas (não possuem os modais deônticos: obrigatório, permitido ou proibido), mas limitam-se a regular o sistema normativo ou conferir competência. Do ponto de vista lógico, as normas de estrutura não têm o conectivo "dever-ser" modalizado, justamente por não interferir na região material da conduta. Como diz Miguel Reale (Lições Preliminares de Direito, Saraiva, p.97), as normas de organização "possuem um caráter instrumental, visando à estrutura e funcionamento de órgãos, ou à disciplina de processos técnicos de identificação e aplicação de normas, a fim de assegurar uma convivência juridicamente ordenada".
Assim, as delegações de atribuição podem ser feitas, teoricamente, para as normas de conduta e para as normas de estrutura. Entretanto, a atual Constituição veda expressamente a delegação quando se tratar de normas de conduta, pois o seu art.5º, inc.II, adota o princípio da legalitariedade, segundo o qual "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Portanto, assiste razão ao professor Celso Antônio Bandeira de Mello quando se insurge contra as delegações de poderes que impliquem em conceder ao Poder Executivo a atribuição de criar ex novodireitos, deveres, pretensões, obrigações, etc., influindo de forma inovadora na esfera jurídica dos cidadãos, quer para obrigar, ou proibir ou permitir.
Nada obstante, inexiste empeço à delegação de atribuições referente a expedição de decretos que contenham norma de organização ou de estrutura. Assim, v.g., é matéria de competência legal a criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas (art. 48, inc.X, da CF/88). Não há, no ordenamento constitucional brasileiro, nenhum preceito que vede a delegação de atribuições, feita por lei, para que o Poder Executivo venha a exercer tais competências por decreto, em substituição ao Poder Legislativo. A modificação na estrutura da Administração não é norma que incida sobre a conduta das pessoas, ou sobre a esfera jurídica de alguém, mas sim sobre uma outra norma que definia a estrutura vetusta, agora modificada. A questão, como se vê, não desce ao plano das relações intersubjetivas, pairando no plano mais abstrato, que é o normativo.
Restaria uma indagação relevante quanto ao ponto: a delegação de atribuições para a expedição de normas de estrutura é incondicionada, ou há limites para a sua consecução?
Não nos parece possa, diante da novel Carta, a delegação de poder ser feita sem peias, mercê do princípio da legalidade, que rege a Administração Pública, bem como do próprio texto constitucional, que expressamente põe limites às delegações efetuadas. O art. 84, inc.IV, da CF/88 outorga competência ao Poder Executivo para expedir decretos e regulamentos para a fiel execução da lei, ou seja, atendo-se a obrigatórios critérios fixados pela lei para a edição do decreto, que embora possa ser discricionariamente formulado, não fica sem limites bem desenhados para a atuação do Executivo, sem o quê haveria arbítrio e não discrição. Da mesma forma, a delegação sobre a administração federal há de ser feito "na forma da lei" (art. 84, inc.VI da CF/88).
De conseguinte, as delegações são permitidas em tais casos, mas ficam condicionadas aos limites e critérios fixados por lei delegadora do poder. Delegação de poder, portanto, não significa total entrega de atribuições, mas sim a abertura concedida ao Poder Executivo para apreciar elementos de fato, dentro de certos critérios estabelecidos, explícita ou implicitamente, pela lei (cf. Pontes de Miranda, Comentários à CF/67, tomo I, Forense, p. 572).
Pontes de Miranda (ob.cit., p. 575), sob o proibitivo de delegações do § único do art. 6º da CF/67, muito bem percebeu que a delegação legislativa proibida constitucionalmente era aquela em que a "função outorgada ao Poder Executivo permite que, sem ônus de afirmar e provar se terem dado as circunstâncias que permitam variações, varia de resolução, dentro da mesma classe de atos administrativos". Vale dizer, quando a lei não estabelecer critérios para que o Poder Executivo, apreciando fatos concretos, normatize atribuições a ele delegadas, tal delegação é inconstitucional, pois deixa ao livre arbítrio do Administrador o regramento total e incondicionado da matéria, sem compromisso algum com o ordenamento jurídico. Ou seja, a inovação efetuada no sistema jurídico seria livre de peias, sem qualquer critério objetivo preexistente.
Não é outro pensamento de Carlos Maximiliano (Comentários à Constituição Brasileira, vol. 1, Freitas Bastos, 1954, p. 411): "Da luta, entre correntes diversas, a respeito da incompatibilidade entre a delegação de atribuições e a doutrina de Montesquieu, resultou meio termo razoável: não se admitiria a autorização pura e simples, não condicionada; prevaleceria a subordinada a requisitos amplos e expressos. De fato, a causa do combate às delegações residia no receio de ampliar o arbítrio do Executivo, aumentando os perigos para a liberdade e o patrimônio dos cidadãos; fixados, porém, os limites da autorização e expedido o decreto respectivo, resultaria, ao contrário, restringido o campo de atividade discricionária do Presidente e dos Ministros"(grifos do autor).
Dessarte, respeitando o ordenamento constitucional vigente, podemos perceber, sem postura extremada, que as delegações de poder não são absolutamente proibidas, como o eram no sistema anterior. Em verdade, a delegação de poder pode ser uma boa técnica de celeridade administrativa, deixando ao Poder Executivo a regulamentação precisa de matérias especificadas pelo Legislativo, respeitados os limites bem fixados do poder regulamentar.
Talvez hoje, mais do que no pretérito, se tenha verdadeiro receio da constitucionalidade das delegações de poder, máxime pela excessiva compulsão do Governo Federal em editar medidas provisórias, mais da vez sem atenção aos pressupostos anotados pela Carta, se apoderando, em via de conseqüência, do poder legiferante da competência do Poder Legislativo. Tal fato grave, e sob todos os aspectos reprochável, não pode, entrementes, servir de espeque à rejeição do instituto da delegação de poder, pois não se pode argumentar contrariamente com base na patológica utilização dessa técnica constitucional legítima. É como se desejássemos o fim dos recursos processuais, mercê da mora que ocasionam na tramitação do processo. Pôr limites ao uso abusivo é uma coisa; outra, bem diversa, é apregoar o fim do instituto sob fundamentação meramente política, sem qualquer atenção ao que se passa no ordenamento jurídico.
Tais as brevíssimas observações propostas, as quais pretendem servir como adminículo à discussão do tema, já agora sob critérios mais jurídicos, na conformidade de nosso sistema constitucional vigente.

(Texto escrito em 1994)

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Apontamentos sobre a responsabilidade tributária

§ 1º - Conceitos Básicos.

O tema da responsabilidade tributária é complexo, não apenas pelas dificuldades teóricas próprias do conceito civilista de responsabilidade, mas também pelo tratamento positivo que lhe foi dado pelo Código Tributário Nacional, cujos preceitos nem sempre privilegiaram a boa técnica, consoante pretendemos demonstrar neste ensaio. Para fixarmos bem nossa compreensão do difícil conceito, prodromicamente salientamos ser a responsabilidade tributária, em verdade, o último elo de uma corrente, que tem como primeiro momento o conceito de fato jurídico tributário. Justamente por esse motivo, e antes de entrarmos no assunto principal desta dissertação, outra não poderia ser nossa atitude senão a de refletir um pouco sobre o fenômeno da jurisdicização e suas conseqüências, embora o façamos aqui de modo bastante perfunctório.

Os homens, em sociedade, vivem em relação com os outros de sua espécie. Essas relações mútuas, contínuas e complexas possibilitam a afirmação, desenvolvimento e progresso do tecido humano social, embora, doutra parte, tragam profundos problemas, principalmente entrechoques e conflitos de interesses individuais ou de massa. Por conta disso, o Ordenamento Jurídico edita normas imperativas para tomar possível a convivência num clima de paz social, destacando do mundo fenomênico determinados fatos relevantes, adjetivando-os de jurídicos e imputando-lhes efeitos determinados. Nasce, desse fenômeno, a importante distinção entre mundo dos fatos e mundo jurídico, distinção fundamental para o desenvolvimento da análise a que nos propomos. Como salienta Lourival Vilanova (As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo, p. 46), os conceitos normativos são seletores de propriedade, ou seja, a norma toma determinados fatos reputados relevantes e os descreve em conformidade com os seus aspectos considerados mais importantes, selecionando, no mundo fáctico, determinadas características. Não é por outra razão que o professor pernambucano chama essa função descritiva, constante na norma, de qualificadora normativa do fáctico (ob. et loc. cit.).

O mundo jurídico, pois, é mundo dentro do mundo do fáctico, sem qualquer distinção ontológica, mas tão só axiológica. É da valoração de determinados fatos, descritos e previstos em normas, e da incidência destas regras sobre os fatos ocorridos em concreto, que nasce o fato jurídico, e, a partir dele, são emanados efeitos jurídicos. Desse modo, indefectivelmente, nasce o mundo do direito. Temos, pois, que o mundo do direito nasce da incidência da norma sobre fatos do mundo, os quais são por ela previstos, tendo como primeiro momento a criação do fato jurídico.

Sendo a norma jurídica qualificadora do fáctico, os técnicos de direito devem conhecer, obrigatoriamente, a sua estrutura lógica, dominando assim o manuseio de todo o fenômeno resumidamente descrito acima.

Toda norma jurídica há de ter, em sua estrutura, a descrição de um fato e conseqüências a ela imputadas. Note-se que estamos a falar de conceitos postos na norma, não de fatos já ocorridos ou por ocorrerem concretamente. A norma jurídica recorta o mundo empírico por abstração, retirando dele as notas relevantes de sucessos históricos que freqüentemente ocorrem na vida em sociedade, para a esses acontecimentos prefigurados no texto normativo imputar conseqüências jurídicas.

A norma jurídica, de conseguinte, é constituída de duas partes: uma em que se descrevem os fatos selecionados (valorados) pelo Ordenamento Jurídico, a qual chamaremos descritor (hipótese de incidência, suporte fáctico ou suposto de fato); e outra em que o ordenamento prescreve efeitos jurídicos aos fatos descritos (fato jurídico, depois da incidência da norma), a qual chamaremos prescritor (preceito, conseqüente ou tese). Logo, é ínsito ao discurso normativo duas linguagens diferentes: uma tem a função meramente descritiva, narrativa, de fatos ou eventos; a outra, mais do que apenas descrever, tem por escopo a modificação da realidade. Essas duas linguagens - uma descritiva, outra prescritiva - são unidas pelo conectivo dever-ser, "o que nos leva a denominar deôntico o sistema do direito positivo" (Paulo de Barros Carvalho, Curso de Direito Tributário, p. 86). É justamente o conectivo deôntico que define e diferencia a norma jurídica em dois tipos: regras de comportamento e regras de estrutura.

Deveras, o dever-ser não se encontra apenas neutro na norma jurídica. Diferentemente, pode ele se modalizar, ou seja, assumir modos diferentes, que são de três tipos (os três modais deônticos):permitido, obrigatório e proibido. É justamente esse critério o diferenciador entre as normas de comportamento e as de estrutura: nas primeiras o dever-ser está sempre modalizado, enquanto, nas outras, encontramo-lo sempre neutro. Portanto, e desde já salientamos, toda relação jurídico-tríbutária nasce de norma de comportamento, com modal deôntico obrigatório.

Para tornar mais claro o que até aqui tentamos expor, nos valeremos de duas definições nascidas da pena de Marcos Bernardes de Mello (Contribuição ao Estudo da Incidência da Norma Jurídica Tributária, in: Curso de Direito Tributário Moderno, p. 09), fixando os conceitos já anteriormente expostos. Para o autor, seguindo as pegadas de Pontes de Miranda, suporte fáctico (descritor) é a definição normativa do "fato ou conjunto de fatos que são considerados relevantes para o relacionamento inter-humano" e preceito (= prescritor) é a parte da norma na qual "é definida a eficácia do fato jurídico correspondente". Guardemos tais conceitos já postos.

É importante lembrar ainda, com vistas a exposição que a seguir faremos, que a incidência da norma sobre o seu suporte fáctico concreto (aquele ocorrido no mundo dos fatos) tem efeitos importantes, principalmente o de juridicizar (tornar jurídico o que era apenas fáctico), desjuridicizar (retirar o adjetivo de jurídico dos fatos jurídicos ou de seus efeitos, expulsando-os, pois, do mundo do direito), e pré-excluir da jurisdicização (uma norma incide para impedir que outra norma juridicize determinado fato ou conjunto de fatos). Por desatenção a tais efeitos da incidência, muitos foram os erros cometidos pela doutrina, ainda hoje prevalecentes.

Quanto à expressão fato gerador, largamente utilizada pela doutrina e positivada pelo CTN, deve ser evitada por sua imprecisão. O fato previsto na norma não tem o condão de, por si, gerar efeitos jurídicos. Só após a incidência da norma ao fato concretizado, tornando-o jurídico, é que emanam efeitos jurídicos. Em conseguinte, só o fato jurídico gera efeitos jurídicos. O fato, em verdade, encontrado em estado bruto, sem qualquer adjetivação jurídica, apenas enseja a incidência da norma que o prevê em seu descritor. É tão importante a precisão vocabular, que muitos equívocos na seara tributária só ocorrem por essa confusão terminológica.

Dissemos que só de fatos jurídicos emanam efeitos jurídicos. Um desses efeitos previstos no conseqüente da norma é a relação jurídica, marcada pela bilateralidade ou plurilateralidade. Pontes de Miranda, em sua extensa obra, demonstrou que a relação jurídica está estruturada em direito, dever, pretensão, obrigação, ação de direito material e exceção. Pela fenomenologia do mundo jurídico, portanto, a norma incidiria no seu suporte fáctico concreto, donde nasceria o fato jurídico, do qual surgiria a relação jurídica e demais efeitos (direito, dever, etc.)

Com tais conceitos expostos perfunctoriamente até aqui, apenas para acenar com quais instrumentos teóricos estamos trabalhando, já podemos analisar o tortuoso problema da obrigação tributária, que nos levará, enfim, ao tema da responsabilidade.


§ 2º - Crítica ao Conceito de Obrigação Tributária.

O Código Tributário Nacional procura conceituar os institutos principais sobre o qual normatiza na preocupação de delinear bem o objeto por ele regrado. Todavia, consoante notaremos no decorrer dessa exposição, o legislador trabalhou, na composição do Código, com matéria doutrinária ainda em formação, portanto sem o poder de responder às questões complexas que já então eram formuladas pela comunidade jurídica. Justamente por isso, toda a construção jurislativa aí positivada, sofre críticas muito fortes hoje, as quais, na sua maioria, com visos de razão. A norma, entretanto, imperfeita ou não está posta (legem habemus!), devendo ser estudada e criticada de tal modo que venha a ser aplicada mais corretamente. O que não pode fazer o critico é jogar pedras e, destruída a construção, nada pôr em seu lugar. Ao intérprete cabe o tornar claro o jus positum, buscando acrisolar suas contradições.

O CTN construiu sua sistematização em torno do art.3º, o qual define o tributo como: "uma prestação pecuniária compulsória, em moeda (...), que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei. .. ". Interessa-nos por agora já ter presente, pela própria dicção legal, o que não é tributo, ou seja: tributo não é sanção decorrente de ato ilícito. Em conseguinte, toda vez que o cidadão levar dinheiro aos cofres públicos por ter cometido um ilícito, tal prestação não constitui tributo, mas multa.

Ocorre, todavia, que o mesmo Código, no seu art. 113, §§ 1º e 2º, ao definir juridicamente o signo obrigação tributária, faz uma distinção entre obrigação principal e obrigação acessória. A primeira "surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária (sic) e extingue-se justamente em crédito dela decorrente". Já a segunda "decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos".

Se meditarmos bem, guardando na retentiva o disposto no art.3º do CTN, descobriremos que essas obrigações acessórias nada têm de tributária, mas são verdadeiras obrigações administrativas, que se expressam num fazer ou não fazer, ao contrário das obrigações tributárias, que se traduzem numa obrigação de dar (Paulo de Barros Carvalho, ob. cit., p. 194 e s.). Assim, enquanto as obrigações acessórias impõem ao contribuinte a realização de determinada atividade, ou a sua abstenção, com vistas a colaborar com a arrecadação levada a cabo pela Fazenda Pública, as obrigações principais expressam o dever do contribuinte em levar pecúnia aos cofres públicos, não como sanção, mas como conseqüência de fatos jurídicos que têm, à sua base, uma referência econômica.

Restaria a indagação de saber como o legislador, contrariando o art 3º do CTN, classifica a penalidade pecuniária como uma espécie de obrigação tributária. O § 3º do art. 113 sinaliza o caminho, ao dizer que "a obrigação acessória, pelo simples fato de sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária" (grifei). Ora, ressalta a impropriedade do tratamento legal dado à matéria. Primeiro, o art. 3º descarta a sanção como tributo para, ao depois, o art.113, § 3º do CTN transformar, a pena pecuniária advinda da inobservância de uma obrigação administrativa, em obrigação tributária, como se o mundo jurídico não fosse um mundo lógico, a magoar-se com tais contradições daninhas à compreensão desse importante Código.

Completando a sua confusão conceptual, esse Diploma Legal prescreve, em seu art. 121, que "sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária"; o que expressa o mesmo conteúdo equivocado do art. 113, § 3º. Os defensores dessa postura do CTN não vêem aí qualquer contradição, alegando que a obrigação tributária não se refere só ao tributo (art. 3º), mas também à penalidade pecuniária. O art. 3º só difere o tributo da penalidade pecuniária, enquanto espécies diferentes, mas ambas pertencentes ao gênero obrigação tributária. Noutros termos, na dicção de Ives Gandra da Silva Martins, "a obrigação tributária abrange tanto o tributo quanto a penalidade pecuniária. O pagamento, seja do tributo, seja da penalidade pecuniária - que são duas espécies do gênero obrigação tributária - extingue o crédito tributário. (...) A obrigação principal é efetivamente uma obrigação tributária. A obrigação acessória é uma obrigação administrativa, porque, quando ela passa a ser tributária, deixa de ser acessória e passa a ser principal" (apud. Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Financeiro e Direito Tributário, p. 192).

Quer nos parecer que há, na doutrina acima citada, um lamentável equívoco. Afinal, como equiparar duas obrigações jurídicas sem se reportar à norma jurídica que as previu? Como equipará-las sem atender aos fatos originantes das relações obrigacionais? Basta observar que a obrigação tributária tem um fato jurídico lícito como seu produtor, ao passo que a penalidade pecuniária é fruto de um fato ilícito. Ora, tal diferença axiológica é bastante em si para mostrar a distância abissal entre uma e outra. Se aceitássemos a tese acima exposta, estaríamos a concordar em que o tributo é uma sanção imposta a todo cidadão, o que constituiria um dislate. Cinjamo-nos de pôr num mesmo plano o licito e o ilícito, como se uma coisa só fossem. O que houve foi um erro doutrinário do legislador, que, pensando na utilidade de se cobrar tributo e pena pecuniária juntos - o que tecnicamente é correto -, equiparou-os, desatendendo à boa doutrina. Por isso, deve o aplicador levar em conta o art. 3º e interpretar os arts. 113, 114 e 115 noutros termos, quais sejam: obrigação tributária é aquela que nasce do fato jurídico tributário, previsto em normas-matrizes de incidência, como as denomina Paulo de Barros Carvalho (ob.cit., p. 83). As obrigações acessórias, as quais denominamos obrigações administrativas procedimentais, nascem do fato jurídico administrativo, consistindo em fazer ou não fazer alguma atividade definida em lei. A sua inobservância (fato ilícito) dá origem a uma sanção. É lamentável que a esses conceitos não chegou ainda parte da doutrina.

Entendendo desse modo os artigos citados anteriormente, evitaremos de coonestar doutrinariamente o preceito estampado no art. 121, par. ún., do CTN, que preceitua: "O sujeito da obrigação principal diz-se: I - Contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitui o respectivo fato gerador; II - Responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei". (grifei).

Ora, o art. 121 do CTN tem raiz em um erro doutrinário bastante arraigado na Ciência do Direito. E que erro é esse? Como bem demonstra Paulo de Barros Carvalho (ob. cit., p. 205/6), o texto legal deste artigo do CTN em estudo teve origem no magistério de Rubens Gomes de Souza, o qual não trabalhando com a obrigatória distinção entre mundo dos fatos e mundo jurídico, terminou vislumbrando no "sujeito passivo aquela pessoa que estava em relação econômica com o fato jurídico tributário, dele extraindo vantagens." (grifei). É dessa visão que nasce a famosa e equivocada distinção entre sujeito passivo direto e sujeito passivo indireto, em função, como foi visto, de um elemento não jurídico; qual seja, a relação econômica existente entre um determinado acontecimento e uma determinada pessoa. Basta ver que Luís Emydgio F. Rosa Jr. (Novo Manual de Direito Financeiro e Direito Tributário, p.317-8), adotando esse entendimento, como aliás a maioria da doutrina o faz, chama o contribuinte de sujeito passivo direto, pois é ele quem está "direta e pessoalmente" ligado ao fato descrito na norma; e o responsável, de sujeito passivo indireto, por estar em relação apenas indireta com o mesmo fato, como parece óbvio. A tautologia dos conceitos expostos gritam veementemente.

Como se depreende, o método utilizado para conceituar o contribuinte e o responsável ressente-se de uma boa técnica, pois, já o demonstramos, o fáctico, como fáctico, nada significa para o direito. Hans Kelsen (Teoria Pura do Direito, p. 02) bem o diz: "Se analisarmos qualquer dos fatos que classificamos de jurídicos... poderemos distinguir dois elementos: primeiro, um ato que se realiza no espaço e no tempo, sensorialmente perceptível..., segundo a sua significação jurídica, isto é, a significação que o ato tem do ponto de vista do Direito". E é essa significação jurídica que nos interessa, não a significação econômica, política ou social. Do ponto de vista de um estudo dogmático, como o que agora levamos a efeito, tais saberes ficam entre parênteses. Não podemos, conseguintemente, eleger a distância ou proximidade de um fato econômico como parâmetro para classificar o sujeito passivo de uma relação, desatendendo ao que se passa na regra jurídica de cada tributo. É esse, sim, o critério mais seguro para chegar-se a uma determinação precisa do sujeito passivo da obrigação tributária: a atenção ao plano da incidência da norma. E não nos esqueçamos que elas incidem para juridicizar, ou desjuridicizar, ou pré-excluir da jurisdicização. A esse desdobramento da norma é que devemos atentar, sob pena de cairmos em graves vícios jurídicos.

Para a má técnica adotada pelo CTN, o responsável seria o terceiro indiretamente ligado ao "fato gerador" que substitui a titularidade da sujeição à obrigação, em virtude do seu descumprimento pelo contribuinte ou no caso de infrações cometidas pelo terceiro, sem contudo haver qualquer alteração na "relação jurídica tributária". É esse, em síntese, o entendimento de Carlos Valder do Nascimento (Obrigação Tributária, p. 91).


§ 3º - Responsabilidade Tributária.

Chegamos assim ao núcleo de nosso ensaio: a responsabilidade tributária.

Refletindo sobre as conclusões expostas acima, logo ressumbra que a compreensão do conceito de responsabilidade tributária fica comprometida pelo limitado arcabouço teórico com o qual o nosso CTN trabalhou na arquitetura do sistema tributário nacional. Em verdade, o responsável tributário nada mais é do que alguém que assume a condição de contribuinte, substituindo o pólo passivo da relação jurídica tributária em virtude de algum outro fato jurídico previsto em lei. Logo, sob o signo responsabilidade tributária esconde-se, de fato, o fenômeno da substituição do pólo passivo da relação tributária, com a exclusão do contribuinte primário, que perde a condição jurídica de contribuinte. Assim, o chamado responsável nada mais é que o contribuinte substituto, excluendo do contribuinte primário em razão de determinado fato previsto pelas lei tributárias. Aqui há, como se vê, uma radical mudança de perspectiva em relação à doutrina dominante, que sustenta que o contribuinte continua sendo contribuinte, nada obstante o terceiro estranho à relação tributária (= responsável) termine por pagar o tributo.

Para demonstrarmos a propriedade do que estamos sustentando, passaremos a analisar a problemática da responsabilidade, consoante pensada pelos civilistas, para aferir de sua utilidade teórica. Com o resultado dessa breve, mas preciosa análise, teremos instrumentos para contrapor nosso pensamento à doutrina dominante, justificando nossas opções com exemplos práticos.

Carlos Valder do Nascimento, fazendo coro ao pensamento mais encontradiço nos livros que versam sobre o tema, afirmou que o responsável tributário nasce de duas situações: (a) do descumprimento, pelo contribuinte, da obrigação tributária - nos termos pelos quais definimos anteriormente; e (b) como fruto de uma sanção por ter o terceiro infringido alguma obrigação administrativa procedimental - chamada pelo código de "obrigação acessória". A letra (b) deve ser de logo descartada, pois já entendemos ter provado que sanção não é obrigação tributária, mas conseqüência de um fato ilícito. Destarde, sujeito passivo dessa relação ilícita não pode ser partícipe de uma relação tributária, como prescreve o art. 3º do CTN.

E quanto a hipótese da letra (a)? A doutrina, em peso, aceita a procedência da assertiva. Em função disso, analisaremos mais detidamente a questão, tentando mostrar os erros graves e perigosos que, em nosso sentir, aí estão entranhados.

art. 128 do CTN afirma que "a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceiras pessoas, vinculadas ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação".

O que transmite o artigo é muito simples -- pelo menos em aparência: em determinadas situações previstas em lei, o contribuinte, sujeito passivo da obrigação tributária, não mais será impelido a solver seu débito, pois "uma terceira pessoa, vinculada ao fato gerador -- veja o critério fáctico adotado -- sujeitar-se-á a solvê-lo no todo ou em parte". Vem a talho aqui a lembrança do art. 121, inc.II, que diz ser o responsável indicado expressamente pela lei, ao passo que no inciso I diga-se que o contribuinte existe como tal em função da sua relação fáctica ser pessoal e direta com o sucesso descrito na norma, e não também por sua situação estar prevista no prescritor normativo como efeito jurídico. Nesse raciocínio, elide-se ou inobserva-se que o contribuinte só assume essa condição jurídica pela incidência da norma sobre seu suporte fáctico, o qual, ao tornar-se fato jurídico tributário, tem como efeito uma relação jurídica obrigacional, onde o sujeito passivo recebe esse nomen juris. Contribuinte é, pois, conceito jurídico, de significação jurídica - como nos advertiu anteriormente Hans Kelsen. Pretender colocá-lo ou encontrá-lo no mundo em geral -- contribuinte de fato! -- é aberração jurídica, que não auxilia na compreensão do instituto estudado

Queremos com isso salientar que a definição de quem seja contribuinte, tanto quanto o responsável, está no critério subjetivo do conseqüente normativo. Portanto, não é relevante diferenciador o fato de o responsável ser previsto em lei, como consta do art. 121, inc.II, pois o contribuinte há de sê-lo também. Sendo assim, e não tendo valor jurídico o critério do direto e pessoal relacionamento com o "fato gerador" para definir quem seja o contribuinte (art. 121, inc.I), que outro critério poderá ser utilizado para explicar o fenômeno descrito no art. 128 do Código? Quem é, juridicamente, o responsável tributário, que não se confunde com o contribuinte? Afinal, -- e essa é a pergunta decisiva -- existe realmente a figura do responsável tributário, como figura distinta do contribuinte?

O CTN, e é dado essencial para o problema proposto ser compreendido em suas raízes, buscou positivar a teoria dualista do vínculo obrigacional, seguindo bem de perto a lição de Amílcar de Araújo Falcão, (Introdução ao Direito Tributário, p. 78 e sgts.), que, antes da feitura do CTN, já utilizava tal teoria como suporte teórico para suas construções doutrinárias. A teoria dualista vislumbra, no vinculo obrigacional, dois elementos: o débito (Schuld) e a responsabilidade (Haftung). Para Amílcar Falcão, "o débito do imposto tem como fonte a lei, e por elemento criador, a realização de um fato imponível legalmente caracterizado". Todos os sujeitos passivos, de relações jurídicas e débitos diferentes, são semelhantes; o que os faz diferir é "somente a modalidade da responsabilidade tributária (Haftung) que a cada um diz respeito". Esta responsabilidade, prossegue ele, será originária ou derivada. A originária "independe de qualquer menção expressa na lei, enquanto a última tem que ser regulada de modo inequívoco".

Observe que essa última afirmação acabou por ser positivada pelo CTN (art. 121, incs.I e II) malgrado não está expressamente nele adscrita. Amílcar Falcão, em seguida, afirma que o "sujeito passivo tributário com responsabilidade originária é contribuinte... A identificação do contribuinte, portanto, incumbe ao intérprete: independe de menção na lei". Por fim, diz-nos o saudoso tributarista: "De tudo o que ficou dito, claro está que, por vezes, pode o legislador dissociar inteiramente a relação tributária, atribuindo o debitum a uma pessoa (contribuinte) e a responsabilidade de sua solução a outra (substituto)" (grifo do autor).

Óbvio se patenteia que o CTN, sem embargos das expressões por ele utilizadas, usou largamente dos conceitos expostos por Amílcar de Araújo Falcão, os quais merecem, portanto, uma breve análise.

Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil, v. II, p. 19 e 20) diz-nos que o débito (Schuld) é o "dever de prestar", que não deve ser confundido com o objeto da obrigação (a prestação), pois esse débito "mora em sua essência mesma"(?). Já a responsabilidade (Haftung) é "um estado potencial, continente de dupla função; a primeira preventiva, cria uma situação de coerção ou procede psicologicamente, e atua sobre a vontade do devedor, induzindo-o ao implemento; a segunda, no caso da primeira falhar, é a garantia que assegura efetivamente a satisfação do credor" (destaques originais). A responsabilidade seria, desse modo, "o poder do credor sobre o patrimônio". (ob. cit., p. 21).
Em tal exposição, percebe-se que o dever ou débito fica sem contornos quando posto junto ao conceito de responsabilidade. Sem a garantia, o débito é como urna caixa vazia, uma mera expectativa de cumprimento, vista do lado ativo da obrigação, como já dito por Pacchioni, (Delle Obbligazioni in Generale, p.7, apud. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, v. 1, p. 155). . Ou seja, o débito, sem a responsabilidade, não passa de uma situação em que o adimplemento da obrigação devida fica ao talante do devedor, deixando o direito de crédito, mercê disso, como uma vantagem desvestida de mecanismos para torná-la efetiva. Essa impressão fica mais nítida quando observamos a lição de Serpa Lopes ("Curso de Direito Civil", v. II, p. 15): "A responsabilidade no direito germânico, é a subordinação ao poder de agressão, ou seja, ao direito de agir por parte do não satisfeito" (grifos nossos).

Assim sendo, o conceito utilizado pelo CTN, se a responsabilidade for do tipo derivada -- em que o terceiro se substitui ao devedor --, nós temos que admitir, por honestidade intelectual, que o debitum torna-se um conceito decorativo, porquanto é o responsável quem é agredido em seu patrimônio, ficando incólume o sujeito passivo da relação de crédito. E, além dessa conclusão desabonadora da teoria, é de se ver que seus séquitos apenas criaram um outro problema: confundiram o plano processual com o de direito material. Sobre isso, dada sua relevância, falaremos a seguir.

Cumpre ainda observar, que toda a teoria já exposta, e adotada pelo código, guarda em seu seio o mesmo equívoco que tanto já apontamos: prende-se ao fáctico e não atende ao fenômeno jurídico. Ao observarem apenas a agressão do patrimônio de uma terceira pessoa (A), ausente na relação existente entre outras duas (B e C), os juristas se fixaram nesta invasão (do patrimônio de A por B), desatendendo ao que juridicamente ocorria na vida, a justificar essa atitude. Tal caminho, perlustrado pela maioria dos estudiosos, levou a algumas confusões, além de perda do critério fundamental para se entender o jurídico: o plano da incidência da norma jurídica.

Por tal desatenção, surgiu todo o problema na explicação do fenômeno assinalado, ficando por aclarar o significado da expressão relação pessoal entre credor e devedor e relação patrimonial entre credor e responsável, quando sabemos que o credor se relaciona pessoalmente, quer queiramos, quer não, com o dito responsável, pois inexiste, por óbvio, relação jurídica do homem com a coisa: no direito, a relação há de ser intersubjetiva, pois seu objeto é a conduta humana. Mas até tal confusão pode ser explicada em suas bases. Ocorre que alguns juristas, ao atentarem para o fator agressão de um patrimônio, deslocaram a responsabilidade do âmbito do direito material e viram-na no campo processual, como um poder ou direito de agressão, ou, noutras palavras, um direito de ação. Ora, a colocação do problema nesses termos cria enormes complicadores: (a) mistura conceitos processuais com os de direito material, além da implícita adoção da teoria civilista da ação, já de há muito superada; (b) levanta um problema grave do ponto de vista processual: se o débito pode ser solvido apenas voluntariamente pelo devedor, sendo a responsabilidade a agressão do patrimônio para o cumprimento forçado da obrigação, onde colocar ai o conceito de condenação, tão caro aos processualistas? Pois, ao que parece, não sobraria espaço para uma sentença de condenação, quando mais uma vez, e de modo mais demorado, persistiria o credor a ter, apenas, uma expectativa de cumprimento da dívida.

Mas a mixórdia não ficou apenas entre os civilistas. José Alberto dos Reis, grande processualista lusitano, fala-nos que o "direito de garantia sobre o patrimônio, construído pelos doutrinadores do Schuld und Haftung, são fórmulas que, sobre uma capa civilista, encobrem uma realidade processual"(apud. Serpa Lopes, ob. cit., p. 19). Feito o deslocamento de uma seara para a outra, pensou-se que "ao contrário da execução nos ordenamentos primitivos, que era essencialmente execução pessoal, contra pessoa do obrigado, nos sistemas modernos, a execução é fundamentalmente real, incidindo sobre o patrimônio e não sobre a pessoa do devedor", pois o "objeto da execução, portanto, não é a pessoa do devedor e sim os seus bens" (Ovídio Baptista da Silva, Curso de Direito Processual Civil, v. II, p. 48). Quer dizer, pois, que a execução deixa de ser pessoal pelo fato de se agredir não mais o corpo físico do devedor, mas sim seu patrimônio. Ora, mas se a execução (invasão ou agressão da esfera jurídica patrimonial, garantia) ressente-se, modernamente, desse aspecto pessoal, como poderíamos encontrá-lo apenas no débito? E, por outra, se a execução é hoje apenas real, quando se executa o responsável, qual o vínculo que sobraria entre o credor, já agora satisfeito em seu crédito, e o antigo devedor, cujo patrimônio permaneceu intocado? A quem sustentar que restaria o débito, ficaria o ter de explicar qual a natureza desse Schuld destituído de Haftung, estando, ademais, o devedor liberado da dívida com o credor satisfeito, mesmo que pelo patrimônio de outrem. Tais indagações, à luz dessa teoria, parece-nos irrespondíveis.

Para pôr urna pá de cal nessa distinção irrelevante entre "execução ou relação pessoal" e "execução ou relação real", basta lembrar o conceito, já tornado clássico, de patrimônio, que "seria o complexo das relações de uma pessoa, apreciável economicamente" (Caio Mário, ob. cit., vol.I, p.263), ou, na dicção de Clóvis Beviláqua, seria a projeção econômica da personalidade civil. É dizer, não se pode abstrair o patrimônio do seu titular, pois ele só existe como um complexo de direitos atribuídos a alguém pelo Ordenamento Jurídico. Dessarte, até mesmo a responsabilidade, enquanto imissão nos bens de alguém, há de ser tida também em seu aspecto "pessoal". Ou seja, tudo que a teoria dualista pretendia resolver com a distinção entre débito e garantia, mostrou-se insolúvel pela ótica de seus postulados, somando-se o fato, relevante, da criação de inúmeros problemas graves.


§ 4º - Breve exposição sobre a nossa posição.

Até o momento de nosso ensaio, alguns pontos foram já assentados: a) a relação tributária nasce do fato jurídico tributário e, portanto, só ao tributo se refere; b) a pena pecuniária, inobstante seja cobrada em conjunto com o tributo, nasce de um fato jurídico ilícito, não tendo natureza tributária; c) o sujeito passivo da relação tributária é o contribuinte, que é determinado pelo ocorrência de um fato previsto no descritor normativo de uma regra tributária, com a conseqüente jurisdicização desse fato (fato jurídico tributário), do qual dimanam efeitos, um deles, a subjetivação passiva na relação obrigacional tributária (contribuinte); d) o critério da proximidade ou pessoalidade em relação ao "fato gerador" é imprestável para determinação do contribuinte de determinado tributo, pois é critério fáctico, desvestido de relevância jurídica; e e) o conceito de responsabilidade mostra-se insuficiente para explicar o fenômeno da satisfação do credor pela agressão do patrimônio do terceiro, o qual não fazia parte da relação obrigacional tributária.

Postas tais premissas e demonstradas as contradições teóricas que sustentam o Código Tributário, quadra tentar uma nova interpretação dos artigos iterativamente citados, já agora com supedâneo em novos conceitos (os quais inicialmente tivemos o cuidado de expor, embora em espaço angusto, dado os lindes desse ensaio). Para tanto, esqueçamo-nos definitivamente do uso da teoria dualista do vínculo obrigacional, cuja serventia resume-se na confusão de realidades distintas, com mistura inidônea de conceitos processuais com conceitos de direito material.

Para nos livrarmos desse erro, a primeira coisa que devemos fazer é observar o plano da incidência da norma. É pela incidência que os fatos do mundo ganham significação jurídica, tornando-se fatos jurídicos. No dizer preciso de Lourival Vilanova (ob. e loc. cit.), "o fato se torna fato jurídico porque ingressa no universo do direito através da porta aberta que é a hipótese" ou descritor. Não pode esquecer dessa verdade o intérprete do direito posto, sob pena de construir uma interpretação desprovida de valor científico. Pontes de Miranda declara expressamente: "para que os fatos sejam jurídicos, é preciso que as regras jurídicas - isto é, normas abstratas - incidam sobre eles, desçam e encontrem os fatos, colorindo-os, fazendo-os jurídicos" (Tratado de Direito Privado, t.I, p.6). Esse colorido novo, essa nova significação, deve ser o centro de nossas atenção.

Como já tivemos oportunidade de dizer, a norma jurídica é formada por dois elementos: um é o descritor ou suporte fáctico; o outro é o prescritor ou preceito. Essas duas proposições são ligadas pela invariável operacional "dever-ser" (functor deôntico), "modal específico das proposições normativas", como nos ensina Lourival Vilanova (ob. cit., p.30). O functor deôntico tem a função de conectar as duas proposições, tornando-as, as duas, linguagem prescritiva direcionada à conduta humana. Esse ponto é relevante. O conectivo "dever-ser", pois, se modaliza em obrigatório, permitido e proibido, "com o que se exaure a possibilidade normativa da conduta. Qualquer comportamento caberá sempre num dos três modais deônticos, não havendo lugar para uma quarta alternativa" (Paulo de Barros Carvalho, ob. cit., p.86).

Pois bem, uma norma jurídica prevê, em seu descritor, uma situação fáctica relevante. Pensemos, à guisa de tornar mais prática a exposição, no art. 130 do CTN, que poderia ter seu conteúdo assim reduzido: os impostos, devidos pelo proprietário de um imóvel, e não pagos, passam a ser devidos pelo seu adquirente. Cumpre avisar, desde logo, que estamos em terreno movediço, onde se torna mais agudo o problema da responsabilidade tributária. E a primeira observação a ser feita é que o devedor do imposto é o proprietário do imóvel. Não nos importa qual o imposto devido, mas apenas o fato de o débito estar ligado ao senhorio do bem. Ao vendê-lo, sem efetuar o pagamento do quantum devido, passou o adquirente a ser responsável pela solutio da dívida, sob pena de sofrer a incursão, em seus bens, da atividade executiva estatal. É de indagar-se, à luz dos questionamentos já feitos, qual a situação jurídica do antigo proprietário em relação ao fisco. Não ficou ele, pelo exarado no art. 130, fora da relação obrigacional?

O art. 128 do mesmo diploma legal parece conter alguma solução. Vem ele assim expresso: "Sem prejuízo no disposto neste Capitulo, a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação". Portanto, para o CTN, o contribuinte, que em nada contribuiu com a fazenda pública, continua a ser contribuinte, embora outro pague sua conta ("excluindo a responsabilidade do contribuinte"). Quanto à parte final do artigo, não há propriamente o que a doutrina chama de "responsabilidade"; há, em verdade, obrigações diversas, sendo, o dito responsável, devedor de multa pecuniária, mercê do descumprimento de uma obrigação administrativa procedimental. São os casos do art.134 ("... respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis..."), os quais não cabem nos estreitos espaços deste escrito.

Sabemos, agora, que o contribuinte, mesmo nada pagando, continua como contribuinte. Mas por quê? Talvez -- e é a única resposta que nós encontramos -- deva-se ao fato de o responsável, que pagou o débito, poder ir contra o contribuinte e receber a quantia por ele despendida. Dessarte, haveria um deslocamento diferido dos bens do contribuinte para os cofres da fazenda pública, pois seria ele, em última instância, quem, de fato, contribuiria. Mas tal argumentação é sem base alguma. Suponhamos que o responsável não acione o contribuinte; certamente esse em nada seria afetado, inobstante persistisse seu débito. A artificialidade de construção ressalta. Paulo de Barros Carvalho (ob. cit., p. 220) bem o demonstra quando aponta o critério fáctico adotado pelo CTN. Diz o ilustre tributarista: "Agora, quando houver a exclusão do participante direto (contribuinte) e assumir aquele -- o terceiro -- a postura de sujeito passivo da obrigação, não se pode falar em responsável e impõem-se o abandono do nome contribuinte para o ser excluído, uma vez que tudo isso se passou no momento pré-legislativo, inteiramente fora do território especulativo do Direito" (grifei).

Cremos, depois desses argumentos, termos demonstrado a inânia da teoria dualista da obrigação, cuja utilidade, para a solução dos problemas propostos, é nenhuma. Resta-nos, então, buscar explicações mais convincentes para o fenômeno amiúde exposto neste ensaio. Outra vez nos acudimos das profundas e ricas lições de Paulo de Barros Carvalho (ob. cit., p. 220-1). Ensina o eminente juristas:

Acreditamos ser essa a fisionomia jurídica do problema da responsabilidade, sempre que o sujeito escolhido saia da compostura interna do fato tributário. Em ambas as hipóteses (refere-se o autor ao contribuinte e ao responsável) teremos uma relação obrigacional de natureza tributária, visto que os sujeitos passivos foram retirados do interior da realidade objetiva descrita no suposto da norma.

"Não sucede o mesmo quando o legislador deixa os limites factuais (grifei), indo à procura de uma pessoa estranha àquele acontecimento do mundo, para fazer dele o sujeito passivo exclusivo... A obrigação tributária só se instaura com sujeito passivo que integre a ocorrência típica, seja direta ou indiretamente unido ao núcleo objetivo da situação tributada... O legislador não pode refugir dos limites constitucionais da sua competência, que é oferecida de maneira discreta, mediante a indicação de meros eventos ou bens.
Sendo assim, como explicar o vínculo surgido que junge o terceiro, estranho à situação tributária, ao pagamento de impostos? Responde-nos o citado doutrinador: "nosso entendimento é no sentido de que as relações jurídicas integradas por sujeitos passivos alheios ao fato tributado, apresentam a natureza de sanção administrativa".

Pelo entendimento desse brilhante autor, portanto, o que levou o CTN, no art. 130, a vincular o adquirente ao pagamento do tributo, devido pelo proprietário, foi por ele "não ter curado de saber, ao tempo da aquisição, do regular pagamento dos tributos devidos pelo alienante até a data do negócio. Por descumprir esse dever, embutido na proclamação de sua responsabilidade, é que se vê posto na contingência de pagar certa quantia" (ob. e loc.cit.). E que dever seria esse descumprido pelo adquirente? "Um dever de cooperação para que as prestações tributárias venham a ser satisfeitas", responde-nos Paulo de Barros Carvalho.

Sem embargo da brilhante exposição desse tributarista de escol, ousamos dissentir da solução proposta. Parece desarrazoado falar-se em "dever de cooperação", implícito no Ordenamento Jurídico. Ademais, se aceitássemos esse raciocínio, teríamos de admitir a metamorfose da obrigação tributária, devida pelo contribuinte, em sanção administrativa, já agora devida pelo "responsável". Ora, é patente a tentativa do tributarista em salvar o critério da proximidade física ou pessoal do fato gerador como critério seguro a determinar o sujeito passivo da obrigação. O terceiro substituto, por não se enquadrar nesse pressuposto, não poderia estar obrigado tributariamente. Mas convenhamos sobre a inabilitação da teoria proposta. O adquirente ter o dever de averiguar se os impostos foram ou não pagos, forrando-se da incidência do artigo 130, é afirmação equivocada. Sendo "conversas" as relações jurídicas, intersubjetivas, (Lourival Vilanova, ob. cit., p. 36), somos forçados a descrer num dever jurídico do adquirente consigo mesmo, cujo descumprimento ensejaria as conseqüências desse artigo citado. Outra deve ser a solução procurada, ainda mais se pensamos que, sendo uma sanção administrativa a obrigação decorrente da não averiguação da existência de impostos devidos por outrem, não teríamos como explicar o porquê do contribuinte (=proprietário) livrar-se do débito existente. Há, na construção, um vício inapagável.

Volvemos, dessarte, ao ponto com o qual iniciamos essa quarta parte do nosso ensaio. Mas acrescentemos àquelas cinco conclusões iniciais, outras duas: i) a "responsabilidade" não nasce de uma sanção administrativa; e g) o contribuinte é aquele que deve aos cofres públicos; e, em não pagando o devido, se submete à imissão da atividade executiva em seu patrimônio.

Postas tais premissas, passemos ao nosso entendimento.

Muito vimos insistindo, durante todo ocorrer de nossa exposição, na utilização do conceito de incidência como o mais eficaz meio para o entendimento do mundo jurídico e, a fortiori, o problema da "responsabilidade" tributária. Marcos Bernardes de MeIlo (Teoria do Fato Jurídico, p. 54 e segts.), fazendo largo uso da doutrina de Pontes de Miranda, conceitua a incidência como o "efeito da norma jurídica de transformar em fato jurídico a parte de seu suporte fáctico que o direito considerou relevante para ingressar no mundo jurídico". Lourival Vilanova (Causalidade e Relação no Direito, p. 82) toca o mesmo diapasão: "A incidência é uma técnica do direito, é seu modo de referir-se aos objetos e situações objetivas, através do pressuposto ou hipótese fáctica da norma. Se o fato que corresponde à hipótese normativa não se verificou, nenhuma relação jurídica propriamente (mesmo em sentido amplo) se deu" (grifos do autor).

Pelo que se vê, é pela incidência da norma sobre os fatos descritos nela e ocorridos no mundo, que nasce o fato jurídico. E apenas desse fato, que adquiriu significação jurídica, nascem efeitos jurídicos. Sem fato jurídico, portanto, não há falar-se em relação jurídica e demais efeitos de estilo. Libertemo-nos, pois, das teorias construídas sem a atenção devida a essa fenomenologia. Os que ainda falam em "fato gerador" e quejandos, ainda não conseguiram ultrapassar a mistura, ainda muito em moda, entre mundo fáctico e jurídico.
Dissemos que a norma incide sobre fatos. Pois bem, mas os fatos descritos em seu descritor podem ser também jurídicos, porquanto o mundo do direito não está separado do mundo em geral, senão que nele está enraizado, como especialização ou subconjunto seu. Marcos Bernardes de Mello (ob.cit., p.39) bem o diz: "O mundo jurídico é, apenas, parte do mundo geral, portanto compõe o todo. O fato jurídico, como os seus efeitos jurídicos, quando entram na composição de um suporte fáctico, são tomados como fatos jurídicos ou como efeitos jurídicos, tal qual são... A distinção entre o mundo dos fatos (geral) e o mundo do direito é puramente lógica, nunca fáctica", ou, como diríamos, nunca ontológica.

Tais conceitos, parece-nos, são essenciais para resolvermos o problema proposto, qual seja: por que o patrimônio de um terceiro é agredido para pagar a dívida de outrem (contribuinte)? Sem embargo da solução que apresentaremos, calha aqui deixar claro que não iremos apresentar toda a teoria por nós desenvolvida, pois ultrapassaria os lindes desse trabalho. Não poderíamos, nesse apertado espaço, desenvolver as considerações necessárias sobre o conceito de direito subjetivo, pretensão e ação de direito material, tão úteis - embora aqui não utilizados - para demonstrar a falácia do conceito de garantia. Tal viés nos levaria a estremar o conceito de ação material e ação processual, distinção árdua e complexa - embora necessária - cujo manuseio nos explicaria uma série de indagações feitas no transcorrer desse trabalho, principalmente no campo do processo civil, como a tentar alcançar uma conceituação precisa sobre condenação e execução (forçada e lato sensu), ainda não conseguida por boa parte da doutrina, presa ainda a classificação tripartida da sentença (sobre o assunto, vide o meu Direito Processual Eleitoral, onde fazemos a distinção referida, aplicando-a naquele ramo do Direito). Só então estaríamos realmente munidos para expor, em toda a sua extensão, a teoria que desenvolvemos. Para o momento, pois, tentaremos demonstrar alguns resultados práticos a que chegamos, os quais correspondem às conclusões anteriormente expostas.

Voltemos ao art. 130 do CTN. Por uma simples leitura dele, constatamos ser o contribuinte o proprietário do imóvel vendido, que devia o pagamento de determinado imposto relativo ao imóvel. Supondo que apenas o IPTU fosse o imposto devido -- de modo a facilitar nossa exposição --, o proprietário seria o sujeito passivo da obrigação tributária nascida desse tributo. E é de ver-se que o critério ou aspecto material constante da norma-matriz de incidência do IPTU é, justamente, a propriedade. Ora, quando o proprietário vende seu domínio, estando em débito com o fisco, o adquirente, em virtude do prescritor do art.130, passa a ser o "responsável" pelo pagamento da quantia devida. E o dado relevante desse fato é que esse artigo tem, como aspecto material, o mesmo aspecto material da regra matriz do IPTU: a propriedade.

Para o CTN, por conseguinte, não importa quem é o proprietário no momento do nascimento da relação obrigacional, mas sim quem é ele no momento do adimplemento voluntário ou forçado. Temos, pois, que o art. 130 incide com duplo efeito: desjuridiciza a relação de crédito-débito entre o proprietário inicial (contribuinte primário) e o fisco; e juridiciza a relação entre o adquirente e o fisco. Podemos dizer, portanto, que o proprietário deixa de ser contribuinte, não tendo mais relação jurídica tributária com o credor do imposto; como também devemos afirmar que o adquirente é o contribuinte, cujo patrimônio servirá para o pagamento do valor devido.

Restaria uma última indagação: qual a relação remanescente entre o adquirente e o proprietário? Só Ordenamento Jurídico poderia decidir essa questão, não havendo solução a priori. Ou seria dada ao contribuinte (adquirente) uma ação para receber o quantum pago por ele; ou não lhe caberia qualquer ação regressiva, tendo que suportar o ônus de sua desatenção.

Como se vê, é despicienda a noção de responsabilidade para resolver um problema que, aplicando corretamente conceitos como o da incidência, torna-se de fácil entendimento. Tal procedimento adotado é aplicável a todos os casos que a doutrina chama de "responsabilidade", à exceção daqueles em que inexiste modificação do pólo passivo da relação obrigacional, mas sim aplicação de uma pena pecuniária por descumprimento de uma obrigação administrativa procedimental. Em casos que tais, não há obrigação tributária, pois, consoante demonstramos, multa não tem natureza tributária.

Ao propormos uma nova explicação para o que a doutrina e o CTN convencionaram denominar de responsabilidade tributária, acabamos por chegar a algumas conclusões divergentes da doutrina dominante, as quais reproduziremos aqui: a) a relação tributária nasce do fato jurídico tributário e, portanto, só ao tributo se refere; b) a pena pecuniária, inobstante seja cobrada em conjunto com o tributo, nasce de um fato jurídico ilícito, não tendo natureza tributária; c) o sujeito passivo da relação tributária é o contribuinte, o qual é determinado pela ocorrência de um fato previsto no descritor normativo de uma regra tributaria, a qual dá ensanchas à incidência dessa norma, com a conseqüente jurisdicização desse fato (fato jurídico tributário), do qual dimanam efeitos, um deles, a subjetivação passiva na relação obrigacional tributária (contribuinte); d) o critério da proximidade ou pessoalidade em relação ao "fato gerador" é imprestável para a determinação do contribuinte de um tributo qualquer; e) o conceito de responsabilidade mostra-se insuficiente para explicar o fenômeno da satisfação do credor pela agressão do patrimônio do terceiro, o qual não fazia parte da relação obrigacional tributária; f) a responsabilidade não nasce de uma sanção administrativa; g) a responsabilidade consiste, basicamente, numa modificação do pólo passivo da relação obrigacional, em que um terceiro relativamente ao fato jurídico tributário original, substitui o devedor (contribuinte), assumindo a sua posição jurídica, graças a incidência de uma outra norma jurídica de duplo efeito juridicizante e desjuridicizante); e h) contribuinte é aquele que deve aos cofres públicos, em virtude da existência de um fato jurídico tributário, e, ao não pagar a quantia devida, se submete à imissão da atividade executiva em seu patrimônio.

Tais premissas nos levaram ao resultado apresentado, o qual poderíamos resumir assim: a norma tributária, ao modificar o sujeito passivo da relação obrigacional já existente, não o faz de modo aleatório, nem utiliza o critério da pessoal e física aproximação do fato gerador. Ao revés, utiliza-se, em seu suporte fáctico, de algum elemento do descritor da norma-matriz de incidência do tributo, desjuridicizando algum efeito, ou alguns, ou todos, ou o próprio fato jurídico tributário original, dando-lhe nova significação jurídica (jurisdicização).

(Texto escrito originalmente em 1993)

terça-feira, 21 de junho de 2016

Calamidade pública ou urgência administrativa? O caso do Rio de Janeiro

A calamidade pública é uma situação de fato; há situações graves ocasionadas por eventos da natureza que afetam ou causam risco de afetar a incolumidade física ou a vida das pessoas, bem como causar severos danos ao patrimônio público. Essa situação de fato ou a prognose de que possa ela ocorrer ingressam no mundo jurídico através do seu reconhecimento por meio de ato formal do Poder Público. 
Nos termos do art. 2º, inc. IV, do Decreto nº 7.257, de agosto de 2010, entende-se por estado de calamidade pública o reconhecimento, pelo Poder Público, de situação anormal provocada por desastres que causem sérios danos à comunidade afetada, inclusive à incolumidade ou à vida de seus integrantes. Vendavais, enchentes, inundações, doenças infectocontagiosas em largas proporções e seca prolongada podem ensejar a declaração de calamidade pública, lembra-nos Jorge Ulisses Jacoby Fernandes em artigo publicado no site Jus Navigandi.
Parece-nos evidente que os desarranjos administrativos e econômicos do Estado do Rio de Janeiro não configuram hipóteses de calamidade pública. O que há é a necessidade de tomada de medidas administrativas para solucionar uma grave crise do Poder Público gerada por crise financeira, risco de danos a pessoas ou ao patrimônio público por falta de planejamento em longo prazo, possibilidade de descontinuidade na prestação de serviços públicos essenciais, etc. Nesse caso, estamos diante de uma situação de urgência administrativa, em que a Administração Pública encontra-se com severos problemas para a prestação de serviços públicos ou para o seu normal funcionamento, tendo como causa graves problemas econômicos ou aqueles decorrentes de desestruturação da sua rede física ou de outras causas geradas por longa falta de planejamento de um ou vários governos.
A retração da economia, a perda de receita dos royalties de petróleo, a máquina pública inchada, enfim, geraram o risco de paralisação dos serviços públicos essenciais, o desabastecimento de medicamentos, o sucateamento da segurança pública, tudo isso no período próximo à realização das Olimpíadas do Rio.
situação de urgência administrativa é também uma situação de fato, incontornável sem a tomada de medidas céleres, atípicas e essenciais para a normalização da prestação dos serviços públicos ou para afastar a situação de risco à vida ou ao patrimônio público decorrente da ausência de planejamento por longo tempo, no mais da vez. Há de ser declarada mediante a emissão de Decreto, possibilitando que os agentes públicos possam tomar medidas administrativas emergenciais para o restabelecimento da normalidade, inclusive com a contratação mediante dispensa de licitação voltada àquele resultado.
A urgência administrativa é um dado objetivo; o ato administrativo que o declara é o título habilitante para a tomada de medidas que, dada a imprevisibilidade de circunstâncias que surjam na execução de medidas emergenciais para superá-la, poderão inclusive estar fora do escopo original. Se os fatos emergenciais impõem medidas administrativas imprevistas, porém necessárias, devem ser elas tomadas através de atos administrativos motivados que demonstrem a sua necessidade e premência. No Direito, a forma não se sobrepõe ao direito à vida, à segurança, à incolumidade física de pessoas e à proteção do patrimônio público em risco de dano irreparável ou de difícil reparação.

domingo, 19 de junho de 2016

Natureza jurídica das fundações públicas



Esse texto foi escrito  originalmente em 1994. Optei por não fazer a sua atualização e revisão porque conserva atualidade, embora existam um número elevado de novas questões que deveriam ser abordadas. Deixarei para um futuro texto a abordagem de aspectos atuais, pendentes de apreciação no texto. Se algum leitor quiser contribuir com alguns questionamentos, ponderações ou críticas, sinta-se à vontade.



NATUREZA JURÍDICA DAS FUNDAÇÕES PÚBLICAS

Adriano Soares da Costa1





I - Conceito de Fundação Pública.


§ 01. - Quem quer que faça um estudo, na doutrina brasileira, sobre as Fundações públicas, se impressionará com as dissensões em torno dessa entidade jurídica. É bem verdade que hoje já existem inúmeros consensos sobre seu regime jurídico, máxime depois que a Constituição Federal a pôs entre aquelas entidades que compõe a Administração Indireta (art. 37, caput; art. 37, inc.XIX; art. 39, caput; art. 71, inc.II; etc). O presente estudo não tem a pretensão de ser a última palavra sobre o assunto, tanto pelos limites da abordagem que nos propomos, como também pelo corte metodológico que impusemos, apenas tratando desta instituição com preocupações conceptuais, sem enfrentar questões de fundo, a respeito de suas espécies, que esperamos possamos fazê-lo futuramente, em estudo de maior fôlego. Por agora nos preocupamos tão apenas com aquilo enunciado no título deste artigo doutrinário: com a natureza jurídica das fundações públicas.

§ 02. - A Fundação Pública é uma pessoa jurídica paraestatal criada por lei. Embora essa assertiva pouco informe sobre o seu conceito, tem a utilidade de lhe fixar algumas notas características, primordiais para sua compreensão. Em primeiro lugar, ressalva que a Fundação Pública é uma pessoa jurídica, embora fique para depois discutir se pública ou privada. Sendo pessoa jurídica, não é um mero órgão, nem repartição, nem comissão ou qualquer outro apêndice despersonalizado da Administração Direta. É pessoa, e como tal possui capacidade de direito, tendo a possibilidade de ser sujeito de direito. A personalidade é a possibilidade jurídica de se encaixar em suportes fácticos, que, pela incidência das regras jurídicas, se tornem fatos jurídicos; portanto, a possibilidade de ser sujeito de direito, ou seja, figurar ativamente na relação jurídica fundamental ou nas relações jurídicas eficaciais (Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, tomo I, 4ª ed., RT, p.153 e 160).

§ 03. - A sua paraestatalidade se deduz de ser ela fração do Estado, que dele se despregou e se personalizou, por alguma conveniência da Administração (Pontes de Miranda, ob.cit., p.300). Pelo conseguinte, o signo paraestatal é tomado aqui como complementação do Estado, não importando se de direito privado, como quis Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo Brasileiro, 15ª ed., RT, p. 544), ou de direito público, como limitou Pontes de Miranda (ob.cit., p.307).

§ 04. - Além dessa característica determinante, há uma outra de não menor valia: há ela de ser criada por lei, porque apenas a lei pode dispor sobre a estrutura e organização da Administração, como também só a lei condiciona e autoriza a atividade da Administração, que é sempre sub-legal, ou seja, submetida aos ditames do ordenamento jurídico.

§ 05. - Sabido que a Fundação Pública é uma pessoa jurídica paraestatal criada por lei, cabe agora saber com que tipo de pessoa jurídica estamos tratando, quais suas notas individualizadoras, as quais a apartam das demais pessoas jurídicas criadas pelo Poder Público.

§ 06. Inicialmente, cabe gizar que o núcleo conceptual básico desta pessoa jurídica há de ser buscada no Direito Civil, vale dizer, na instituição nominada de fundação, que seria gênero dessa espécie de ente público. Logo, indubitável que toda a teoria das Fundações deve ser aplicada às Fundações Públicas, porque substantivamente se reduzem a um mesmo substrato teórico e categorial. De fato, para que possamos usar a expressão Fundação Pública ou Fundação de direito privado, forçoso reconhecer que ambas possuem uma cepa jurídica comum.

§ 07. - Orlando Gomes (Introdução ao Direito Civil, 5ª ed., Forense, p. 217) leciona que "a fundação é pessoa jurídica de tipo especial, pois não se forma pela associação de pessoas físicas; nem é obra de um conjunto de vontades, mas, de uma só. É, em síntese, um patrimônio destinado a um fim". Tal o conceito encontradiço em grande parte da doutrina, que a par de dizer muito, pouco informa. De fato, embora seja a Fundação composta de um patrimônio, ao qual seu instituidor fixa um fim, também o patrimônio composto por subscrição para determinado fim (socorro às vítimas de inundações, seca ou incêndio; abertura de estrada ou construção de monumento, etc.) também é patrimônio especial, embora não possua personalidade jurídica. Também as coletas para beneficência e fins de utilidade comum, ou mesmo doações modais são um patrimônio destinado a um fim, embora também não possuam personalidade. Portanto, Fundação é um patrimônio personalizado destinado a um fim de interesse coletivo. Mas não apenas isso.

§ 08. - A Fundação nasce de declaração de vontade do fundador, sendo efeito de negócio jurídico unilateral, pelo qual se determina o fim da Fundação e os meios com que pode contar inicialmente (Pontes de Miranda, ob.cit., p. 453-4). Nada obstante também possa ser criada por lei, ou por ato administrativo que a lei permita (Pontes de Miranda, ob.cit., p.468).

§ 09. - Há, na doutrina, controvérsia quanto à especificação do ato criador da Fundação, quando o seu fundador é o Poder Público. Para Celso Antônio Bandeira de Mello (Personalidade de Direito Público, RDP-1, p.131) a criação da pessoa jurídica só é possível através de lei, afirmando que "é meridiano que unicamente o Legislativo, a quem incumbe fixar originária e inauguralmente a vontade do Estado, inovando na ordem jurídica, pode erigir um centro novo de titularidade de interesses públicos (...) Sendo próprio e privativo da lei o poder de inovar na ordem jurídica - e a criação de um sujeito de direito público é inovação da mais alta relevância - não poderia ela delegar ao Executivo uma atribuição que é especifica e privativamente sua" (p. 132). Por isso, insiste o eminente professor, quando a Lei autoriza ao Poder Executivo instituir uma Fundação, apenas autoriza a que ele, através de Decreto, destinado à fiel execução da lei, promova todas as medidas subseqüentes necessárias ao funcionamento efetivo da pessoa. Por conseguinte, a existência jurídica da pessoa jurídica foi inaugurada pela lei, cabendo ao Poder Executivo apenas atuar a vontade da lei, proporcionando sua existência fáctica. Portanto, a lei cria a pessoa jurídica; a instituição da Fundação compete efetivamente ao Executivo, com a promoção dos atos posteriores, jurídicos e materiais, indispensáveis à realização concreta da vontade da lei (Celso Antônio, ob.cit., p. 133).

§ 10. - Desse modo, partindo das premissas postas, o professor paulista afirma que o registro, quando se trata de Fundação criada por lei, é procedimento extravagante e desnecessário. Consoante assevera, "uma entidade de direito público não pode ser criada por registro; só pode ser criada por lei" (p. 130). Nesse passo, reproduziu a lição de Miguel Reale ("Fundações de Direito Público...", RDA - Vol. 72 - p.413 e 414), para quem o registro de fundações oficiais está a demonstrar a que descaminhos podemos ser levados quando deixamos a via ampla e necessária dos princípios gerais que governam e discriminam os conceitos, as categorias e os esquemas sistemáticos que fazem do direito um lucidus ordo" (p. 129). Para Celso Antônio, portanto, se a lei não conceder expressamente à fundação uma personalidade privada, o decreto não poderá transformá-la em fundação privada, porque sendo ato administrativo está subjugado à lei. Cumpre executá-la simplesmente (p.138).

§ 11. - Mas nem todos são concordes com esse entendimento. Manoel de Oliveira Franco Sobrinho (Fundações e Empresas Públicas, RT, 1972, p.5 e 6) afirma que as fundações criadas pelo Poder Público não contrariam ao Código Civil, ficando sujeitas às normas que regem as pessoas jurídicas de personalidade privada. É bem verdade que o professor paranaense escreve sob à vigência do Decreto-Lei 900/69, que pôs as fundações públicas fora da Administração Indireta, submetendo-as à legislação civil (art. 2º). Todavia, a opinião do Autor é relevante, porque ele não aceita a categoria individualiza fundação pública, considerando a existência apenas de fundações regidas pelo direito privado, as quais, quando instituídas pelo Poder Público, se submeterão à fiscalização e tutela pelas normas impostas de Direito Administrativo, podendo, sempre quando quiser, o ente criador fazer cumprir a sua vontade (p. 9). Na dicção do próprio autor: "Pode o Estado instituidor, quando queira ou como queira, dentro da discrição que a própria lei faculta aos instituidores de fundações, normatizar em regras obrigatórias o modo de como administrá-las e dar destino ao patrimônio quando extintas" (p.10). Sem embargo, o eminente professor condiciona a intervenção estatal ao disposto no ato constitutivo (p.10). É, sem dúvida alguma, a posição mais arraigadamente civilista entre os administrativistas que versaram sobre o tema.

§ 12. - José Cretella Jr. (Administração Indireta Brasileira, 2ª ed., Forense, p. 242 e 243) afirma que o Estado pode criar fundações de direito público e fundações de direito privado. Ambas são criadas por lei, cabendo ao decreto apenas institui-las e aparelhá-las, a fim de que funcionem eficazmente. Lembra o ilustre autor, no entanto, a lição de Miguel Reale (Direito Administrativo, p. 23), segundo a qual "quando a lei institucional dá nascimento a fundação destinada a fins e interesses manifestamente coletivos, sem lhe emprestar, de maneira expressa, a configuração jurídico civil, deve entender-se que se trata de ente de direito público, não subordinado aos preceitos aplicáveis às fundações civis, quer quanto às formalidades de sua constituição, quer quanto ao processo de sua fiscalização" (p.236).

§ 13. - Celso Antônio Bandeira de Mello (Prestação de Serviços Públicos e Administração Indireta, 2ª ed., RT, 1987, p. 154), em monografia posterior ao Decreto-Lei nº 900/69, passou a admitir que as fundações governamentais tanto podem ser públicas como privadas mas que, em sendo públicas, respondem à figura jurídica da autarquia. Em nota de rodapé, Celso Antônio reproduziu a crítica que lhe fez Sérgio de Andrade Ferreira, segundo a qual é erro distinguir entre lei criadora e decreto instituidor, pois tal distinção é válida apenas para as paraestatais (economia mista e empresa pública). Quanto às fundações, a lei apenas autoriza a criação, não sendo ela mesma a criadora (p. 164). A resposta à crítica foi mera reprodução do pensamento adotado pelo professor paulista.

§ 14. - Como se vê, a questão envolvendo a natureza do ato criador do Poder Público é controversa, mercê de sua importância quanto aos limites condicionadores do decreto ou ato constitutivo, que fixam as regras a serem aplicadas ao novo ente jurídico. De nossa parte, entendemos que nenhum dos autores acima citados enfrentaram corretamente a questão, levantando falsos problemas, os quais apenas encambulharam a exposição correta da matéria.

§ 15. De regra, há três princípios que podem informar os legisladores quanto à personificação das entidades não-personificadas: a) o princípio da livre criação personficante, segundo o qual, criada a entidade, esta é personificada ope legis; b) princípio da determinação estatal, pelo qual a personificação depende da vontade (não só do exame) do Estado; e c) princípio da determinação normativa, que apenas exige a satisfação de certos pressupostos de direito material, com ou sem exigência de registro ou publicação. O Código Civil Brasileiro adotou esse último princípio.

§ 16. - O negócio jurídico fundacional institui a fundação de direito privado. Todavia, instituir não é dotar, o ente criado, de personalidade jurídica. Há sociedades, associações e fundações que não são ou ainda não foram personificadas, e a legislação civil não as desconhece (art.20, § 2º do CCB: "As sociedades enumeradas no art. 16, que, por falta de autorização ou de registro, se não reputarem pessoas jurídicas..."). Como ensina Pontes de Miranda (ob.cit., p.333), "Sociedade ou associação não-personificada é toda sociedade ou associação, que resultou de negócio jurídico, ou de lei, mas para a qual (ainda) não se obteve personificação. Organizou-se social ou corporativamente, não é pessoa". De fato, a entidade ainda não personificada já esta, de certo modo, distinguida das pessoas dos seus membros, porque já há, pelo negócio jurídico unilateral, ou bilateral, ou plurilateral, o patrimônio destinado a um fim. Os atos das próprias entidades que ainda se não registraram são seus (art. 20, § 2º, verbis: "responsabilizá-las por seus atos"). O patrimônio ainda pertence aos membros -- como não há pessoa jurídica, o patrimônio não é distinto do de seus membros --, mas já está em comum, sujeito às regras do ato constitutivo, o que o diferencia dos patrimônios dos membros (vide Pontes de Miranda, ob.cit., p. 344).

§ 17. - A personalidade depende de registro de ato constitutivo (art. 18 do CCB). Antes do registro, entre ele e o ato constitutivo, há a entidade não-personificada. Mas poderia o legislador conceber a personificação ipso iure, bastando adotar o princípio da livre criação personificante, como ocorre quando legislador cria e adota a entidade de personalidade, com efeito imediato. Como assevera Pontes de Miranda, "Se a lei, que cria a sociedade, ou a associação, ou a fundação, dispensa-lhe o registro para efeito personificativo, tudo se passa instantaneamente: à data que se marca na lei, a pessoa jurídica é, sem o período constitutivo, ou o deixa a atividade posterior de pessoas indicadas, ou a serem indicadas" (p. 358).

§ 18. - Pelo conseguinte, não se pode, quanto ao problema da personalidade jurídica das entidades criadas pelo Poder Público, ser encetada resposta a priori. É o próprio ordenamento jurídico, ou a lei que criou a entidade - ou autorizou sua criação-, que poderá trazer a resposta. Curiosamente, a doutrina partiu para esse debate meio confuso por não ter feito uma distinção simples, que bem poderia trazer luzes ao tema: trata-se da distinção entre Fundação Pública ou Governamental, instituída pelo Poder Público, que poderá ter, de acordo com a lei ou o ato administrativo, personalidade de direito público ou de direito privado; e Fundação instituída por particulares, que terá sempre personalidade privada, se não houver lei que a transmude para personalidade de direito público.



Fundação Pública    ----------------------------------------->      personalidade de direito privado (art. 171, § 20. da CF/88)

ou Governamental  ------------------------------------------>     personalidade de direito público (art.39 da CF/88)


Fundação instituída
por particulares         ---------------------------------------->       personalidade de direito privado



§ 19. - A falta dessa distinção induziu à cinca Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, que apenas viu a personalidade de direito privado, sem observar que a Fundação Pública pode ser de direito público ou privado, sendo, nesse último caso, regida pela legislação civil parcialmente derrogada por norma de direito administrativo. Também Celso Antônio Bandeira de Mello e Miguel Reale, mercê do excessivo apego a conceitos doutrinários importados da Itália, não observaram que a personificação pode ser efeito distinto do ato legal que criou a entidade, o que não tornaria excessivo, dependente do disposto na lei, o registro do ato constitutivo. Com razão, quanto ao ponto, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito Administrativo, 4ª.ed., Atlas, p.318 e segts.).

§ 20. A lei pode criar a entidade; criar e dotar a entidade de personalidade jurídica; ou apenas autorizar a que sua criação se dê, fixando de antemão sua finalidade, seu patrimônio e sua estrutura, ou deixando, quanto a esta, que o ato administrativo o faça.

§ 21. Se a lei apenas cria a entidade, desde sua publicação a entidade existe, embora sem personificação. Há fundação in fiere, em situação jurídica símile a do nascituro. Pode se dar que a norma crie e já disponha sobre a fundação (ainda) não-personificada, deixando para o decreto o efeito personificante, ou para ato administrativo dependente de registro. Se for por decreto, há desnecessidade de registro, embora o próprio decreto possa exigi-lo. Nesse campo, o legislador ou o administrador têm inteira liberdade: aquele na confecção da lei; esse, se a lei lhe deixou um branco para agir.

§ 22. - Se a lei cria a fundação e já lhe concede personalidade jurídica, resta ao Poder Executivo apenas praticar os atos materiais de viabilização fáctica da nova pessoa jurídica. Pode ocorrer, porém, que a norma, sem embargo de dar personalidade à entidade, não regre sua estrutura e administração, deixando que o decreto o faça. Como já há pessoa jurídica, não terá nenhum efeito jurídico o registro do ato constitutivo. Seria mera excrescência.

§ 23. Havendo apenas autorização para que o Poder Executivo crie a pessoa jurídica, é importante que a lei autorizativa desde logo estipule sua natureza (sociedade, associação ou fundação), seu regime jurídico (direito público ou privado), sua finalidade e seu patrimônio. Mas pode ocorrer que ela mesma omita algum ou alguns desses itens, deixando ao administrador ampla liberdade. Nesse caso, o ordenamento jurídico acima da lei condiciona essa liberdade, que não é absoluta.

§ 24. Das três formas cima citadas, a de pior técnica é a lei autorizativa, porque concede ao Poder Executivo poderes demasiados na criação e estruturação da novel pessoa jurídica. Mas isso é um problema de política legislativa.

§ 25. - O patrimônio, como substrato estrutural das Fundações, deve ter a sua finalidade desde logo fixada em lei, seja ela criadora, criadora e personificante, ou apenas autorizativa. Definida sua finalidade, apenas por lei poderá ser ela alterada, seja a Fundação Pública de direito público ou de personalidade privada. Como leciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro (ob.cit., p.322). "O poder público pode introduzir alterações na lei instituidora, da mesma forma que ocorre com as sociedades de economia mista e empresas públicas. Em todas elas existe uma parte das relações jurídicas que é regida por essa lei instituidora e imutável por via estatutária; e outra parte que a própria lei deixa para ser disciplinada pelo estatuto; para alterar a lei que rege a fundação, o Estado não depende de prévia decisão dos órgãos de direção da entidade".

§ 26. - Doutra banda, em caso de fundação regida por estatuto, ou mesmo decreto, não pode o fundador determinar que, havendo extinção da Fundação Pública de direito privado, seu patrimônio seja destinado para outra instituição que não o próprio Poder Público. Se a lei permite essa destinação, está autorizando uma doação com efeito protraído. Mas se não há previsão legal, o decreto, ou o ato constitutivo, não poderá destinar o patrimônio, porque a) o interesse público é indisponível; e b) os bens públicos só podem ser alienados (doação, permuta, etc) com expressa autorização legal. Nos valendo mais uma vez das lições de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (ob.cit., p.322), podemos afirmar com ela que "o poder público, ao instituir fundação, seja qual for o regime jurídico, dificilmente pratica simples ato de liberalidade para destacar bens de seu patrimônio e destiná-los a fins alheios que não sejam de interesse do próprio Estado... Por essa razão, a fundação governamental não adquire, em geral, vida inteiramente própria, como se fosse inteiramente instituída por particular. É o interesse público que determina a sua criação; sendo variável o interesse público, o destino da fundação também pode ser mudado pelo ente que a instituiu, quer para alterar a lei que autorizou a sua criação, quer para revogá-la."

§ 27. - Quanto ao patrimônio da Fundação, cabe uma última observação. Ainda que a iniciativa privada participe do fundo patrimonial para a constituição de Fundação Pública lato sensu, o único instituidor é o Poder Público, salvo expressa disposição legal em contrário, permitindo que além do Estado possa constar particulares como fundadores. Nesse caso, se a fundação foi criada por duas ou mais pessoas, não há bilateralidade das declarações de vontade. Há declarações unilaterais convergentes, dando ensejo ao ato jurídico coletivo, criativo (Pontes de Miranda, ob.cit., p. 458). Não havendo norma autorizativa da participação da iniciativa privada como co-fundadora, poderá ela participar doando bens para a dotação do patrimônio suficiente à criação da Fundação Pública. A doação poderá ser formalizada em negócio jurídico autônomo, ou conjuntamente com o ato constitutivo. Nesse caso, "o negócio jurídico fundacional pode estar contido em negócio jurídico bilateral, inclusive contrato, porém, mesmo assim, não perde a sua natureza de negócio jurídico unilateral e não-receptício" (Pontes de Miranda, ob.cit., p.457). Os bens, assim doados, passam a ser de propriedade da Fundação e, com sua extinção, passam ao patrimônio do Poder Público.

§ 28. - No que respeita ao último elemento definidor das Fundações, podemos dizer que elas não podem se afastar ou se desviar da finalidade que lhes foi atribuída por lei. Vigora, por conseguinte, o princípio da especialidade, pelo qual a fundação instituída pelo Poder Público não poderá se desviar do fim para o qual ela foi criada, que deverá ser sempre perseguido. Como explica José Cretella Jr. (ob.cit., p.251). "Em razão do princípio da especialidade, por exemplo, é que as fundações de direito público não podem aceitar liberalidades, doações ou legados, que as obrigassem à prática de atividades estranhas às suas próprias atribuições, como é, entre outros, o caso do hospital, criado sob a forma de fundação pública, que aceitasse legado, em troca de providenciar o funcionamento ou a manutenção de estabelecimento de ensino jurídico, por exemplo...". Para que outra finalidade pudesse ser perseguida, necessário que a lei criadora, ou a lei criadora e personificante, ou a lei autorizativa, fossem alteradas, prevendo o novo desiderato. Quando afirmamos anteriormente, que a lei autorizativa deixava espaço para o administrador desenhar a compostura interna das Fundações, podendo omitir alguns itens do conceito de fundação, não nos preocupamos em gizar, e agora o fazemos, que a finalidade da fundação há de ser desde logo definida no ato legal.

§ 29. - O fim especificado na lei é pressuposto material, necessário, da fundação (Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, tomo I, p. 455). Sendo o interesse público indisponível, seria absurda a hipótese de uma lei autorizando a criação de uma fundação, sem ab ovo fixar-lhe a finalidade. "Fica autorizado o Poder Executivo a criar uma Fundação Pública"(!). Para quê? Haveria evidente desvio de finalidade em tal norma, que estaria delegando poderes ao Executivo, de maneira ilegal e sem contornos precisos. Como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo, 4ª ed., Malheiros, p. 23), "A indisponibilidade dos interesses públicos significa que sendo interesses qualificados como próprios da coletividade -- internos ao setor público -- não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis... Na administração os bens e interesses não se acham entregues à livre disposição da vontade do administrador. Antes, para este, coloca-se a obrigação, o dever de curá-los nos termos da finalidade a que estão adstritos. É a ordem legal que dispõe sobre ela" (grifei).


II- A Legislação Federal Aplicável.


§ 30. - O Decreto-Lei nº 200/67, em sua redação original, deixava de fora, do rol das entidades que compunham a Administração indireta, as Fundações Públicas, equiparando-as às empresas públicas (art. 4º, parágrafo único), essas sim consideradas como indiretas.

§ 31. - O Decreto-Lei nº 900/69 trouxe limitações à criação de Fundações Públicas, admitindo sua instituição dês que (a) possuíssem dotação específica de patrimônio gerido pelos órgãos de direção segundo os objetivos estabelecidos na respectiva lei de criação; (b) tivessem a participação de recursos privados no patrimônio e nas despesas correntes, equivalentes, no mínimo, a um terço do total; (c) objetivos não lucrativos; (d) atendessem aos demais requisitos do art. 24 e segts. do CCB (art. 2º). Embora continuasse a não incluir as Fundações entre as entidades da Administração Indireta, o Decreto-Lei nº 900/69 as submeteu à supervisão ministerial (art. 3º).

§ 32. - A Lei Federal nº 7.596, de 10.04.1987, modificou novamente a redação do Decreto-Lei nº 200/67. Com a nova redação, que hoje vigora, houve substancial alteração, a qual passaremos a analisar, sem mais fazer menção à Lei, mas apenas ao Decreto-Lei nº 200/67, já com as modificações introduzidas.

§ 33. - As Fundações Públicas passaram a ser legalmente consideradas como integrantes da Administração Indireta, dotadas de personalidade própria (art.4º, inciso II, alínea "d"). Como entidades compreendidas na administração indireta, vinculam-se ao Ministério em cuja área de competência estiverem enquadradas suas principais atividades (art.4º, § único). Desse modo, as Fundações Públicas passaram a ter reconhecido seu vínculo onfálico com a administração direta, numa relação de fiscalização (supervisão ministerial).

§ 34. O Decreto-Lei nº 200/67 passou a conceituar o signo Fundação Pública, dispondo-a como "a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, criada em virtude de autorização legislativa, para desenvolvimento de atividades que não exijam execução por órgãos ou entidades de direito público, com autonomia administrativa, patrimônio próprio gerido pelos respectivos órgãos de direção, e funcionamento custeado por recursos da União e de outras fontes". Já o § 3º desse mesmo artigo preceituou que as Fundações Públicas adquirem personalidade jurídica com a inscrição da escritura pública de sua constituição no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, não se lhes aplicando as demais disposições do Código Civil pertinentes às Fundações.

§ 35. - O conceito de Fundação Pública, construído estipulativamente pelo Decreto-Lei nº 200/67, deve ser interpretado com cautela. Como ensina Eros Grau (Direito, Conceitos e Normas Jurídicas, RT, p.66), "os conceitos jurídicos têm por finalidade ensejar a aplicação de normas jurídicas. Expressados, são signos de signos (significações) cuja finalidade é a de possibilitar aquela aplicação... são usados para permitir e viabilizar a aplicação de normas jurídicas". Havendo indeterminação do conceito, o legislador pode optar por fixar suas notas essenciais, imprimindo-as na norma jurídica como delimitadoras de sua aplicação. Conceito estipulativo corresponde a uma definição, que a norma jurídica contempla visando superar a ambigüidade ou imprecisão do termo do conceito (Eros Roberto Grau, ob.cit., p.71). Pode ocorrer, entrementes, que regras jurídicas diferentes conceituem um mesmo termo de modo diverso. Havendo tal fato, deve o conceito estipulativo ser aplicado apenas em seu contexto normativo.

§ 36. O Decreto-Lei nº 200/67, com sua nova redação, tem eficácia legal limitada às Fundações já existentes quando de sua entrada em vigor. De fato, se uma nova Lei criar uma Fundação Pública, dando-lhe tratamento diverso, derrogada quanto a ela ficou o Decreto-Lei, pois lex posteriori derrogat priori (vide Celso Antônio Bandeira de Mello, Prestação de Serviços Público e Administração Indireta, p.158-9, nota 36). Doutra banda, a definição legal também não alcança as Fundações Públicas de direito público, tanto porque elas se equiparam às autarquias, como também porque não foram elas constituídas por escritura pública, mas apenas por lei. Daí porque podemos afirmar que a Fundação Pública de direito público existe independentemente da definição legal, que apenas se preocupou com a forma mais controvertida de fundação pública, que era a de personalidade de direito privado. Se esta foi encartada entre as entidades da administração direta, a fortiori o será a de direito público, equiparada às autarquias (art. 39, caput, da CF/88).

§ 37. - Inovação curiosa trouxe-nos o § 3º do art. 5º do Diploma glosado. Por ele, as Fundações passaram a ser regidas pelo Código Civil, se privadas fossem, apenas para efeito do registro de seu ato constitutivo, não mais sendo de se lhes aplicar as demais disposições. Dessarte, o Ministério Público não mais é o seu fiscal, porque o próprio Poder Público deve exercer o controle sobre suas entidades. Tal mudança equiparou, de certo modo, as Fundações Públicas às empresas públicas, sendo certo que aquela, como de regra atua como beneficente, possui favores tributários que essa não possui, pelo fato de atuar no setor econômico.

§ 38. - Consoante doutrina Maria Sylvia Zanella Di Pietro (ob.cit., 326-7), às Fundações de Direito Privado, instituídas pelo Poder Público, se aplicam as seguintes normas:

  • subordinação à fiscalização, controle e gestão financeira exercido pelo Poder Executivo, inclusive com fiscalização pelo Tribunal de Contas;

  • constituição autorizada por lei (art. 37, inc. XIX da CF/88);

  • a sua extinção somente poderá ser feita por lei, ficando nesse aspecto derrogado o art.29, do CCB, que prevê as formas de extinção da fundação, agora inaplicáveis às fundações públicas;

  • equiparação de seus empregados aos funcionários públicos para os fins previstos no art.37 da CF/88, inclusive para fins criminais (art. 327 do CP) e de acumulação de cargos.

  • sujeição de seus dirigentes a mandado de segurança; cabimento de ação popular; legitimidade ativa para propor ação civil pública (art. 5º da Lei nº 7.347/86).

  • juízo competente previsto na esfera estadual;

  • submissão à Lei nº 8.666/93 - Estatuto das Licitações;

  • em matéria de finanças públicas, as exigências contidas nos arts.52, inc.VII; 169, parágrafo único; e 165, §§ 5º e 9º da CF/88;

  • imunidade tributária referente ao imposto sobre o patrimônio, a renda ou serviços vinculados a suas finalidades essenciais ou à delas decorrentes (art. 150, § 2º, da CF/88).

§ 39. - Evitaremos descer à analise de cada um desses tópicos, apenas chamamos a atenção para o terceiro deles, a merecer um pequeno corretivo. Como mostramos anteriormente, há três formas possíveis pelas quais o Ordenamento Jurídico pode legislar sobre as fundações públicas, quando da sua criação: apenas cria; cria e personifica; ou só autoriza ao Poder Executivo proceder a criação. Nos dois primeiros casos, a extinção apenas por lei poderia ser feita; agora, mesmo que criada por ato do Executivo -- ainda que autorizado por lei -- apenas por lei poderá ser extinta. Essa é a correta dicção legal. Mas a tais sutilezas, parte da doutrina ainda não chegou.


III- Negócio Jurídico Fundacional e Patrimônio.


§ 40. - Quem destina um patrimônio para uma dada finalidade, personificando-o, não doa; antes, institui uma fundação. Como já o dissemos anteriormente, o negócio jurídico fundacional é unilateral, não-receptício. É tão negócio jurídico quanto a doação, ambos autônomos. Quem constitui a fundação destina, por negócio jurídico unilateral (testamento ou não), seu patrimônio à perseguição de uma finalidade previamente determinada, com o intuito personificante. Pode ocorrer que se faça doação para a Fundação já personificada, o que de modo nenhum altera o ato constitutivo ou sua finalidade, ainda mais se se trata de Fundação Pública (cf. José Cretella Jr., ob.cit., p.251) Outra questão é a doação admitida pelo art. 2º do Decreto-Lei nº 200/67, com a redação dada pelo Decreto-Lei nº 900/69, a ser feita pela iniciativa privada para compor no mínimo um terço (1/3) do patrimônio da Fundação. Achamos esse ponto merecedor de atenção, porque poderia suscitar o dislate de se imaginar que, mercê desses dispositivos legais, os particulares passariam a co-fundadores.

§ 41. - A doação é um contrato gratuito, unilateral, real e formal, embora possa ser consensual (art. 1.172 do CCB). No comum dos casos, a lei que institui a Fundação admite a participação de recursos privados na dotação patrimonial da fundação, sem descer a detalhes quanto aos meios para a concretização do permissivo. Se alguém doa seus bens, livremente, com redução patrimonial, sem comutatividade, há oferta de doação; com a aceitação pelo beneficiário, perfaz-se o contrato de doação (art. 1.165 do CCB). Assim, se alguém da iniciativa privada manifesta sua vontade, no sentido de participar, com seus bens, da dotação patrimonial de uma Fundação in fieri, fez oferta de doação (negócio jurídico unilateral receptício). O busílis da questão está em se saber se a Fundação in fieri, portanto ainda não-personificada, pode aceitar a doação, visto não ser ainda sujeito de direito. A questão é cavilosa, e, no caso das Fundações Públicas, não pode ser tratada aprioristicamente, porque pode ocorrer que a lei a crie sem personalidade; ou já com personalidade; ou apenas se limite a autorizar sua criação.

§ 42. - A Fundação não-personificada é semelhante ao nascituro, porquanto ambos são potencialmente pessoas -- uma física; a outra, jurídica -- em processo de formação. "Nascituro é o concebido ao tempo em que se apura se alguém é titular de direito ou de pretensão, ação, ou exceção, dependendo a existência de que nasça com vida" (Pontes de Miranda, ob.cit., p.166). E a lei, não desconhecendo da possibilidade do nascimento de uma pessoa -- no sentido civil da expressão --, põe a salvo desde a concepção os seus direitos (art. 4º do CCB). Naturalmente que a proteção dispensada por lei ao nascituro, que não possui (ainda) personalidade jurídica, fez suscitar a opinião da existência de direitos sem sujeito, portanto assubjetivados. A idéia foi repelida pela doutrina, dada o absurdo lógico de uma relação jurídica sem um de seus pólos. Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil ,vol. I, edição universitária, Forense, p.159), opondo-se a tal pensamento -- que chegou a ser defendido por Clóvis Beviláqua --, ensinou: "O nascituro não é ainda uma pessoa, não é um ser dotado de personalidade jurídica. Os direitos que se lhe reconhecem permanecem em estado potencial. Se nasce e adquire personalidade, integram-se na sua trilogia essencial, sujeito, objeto e relação jurídica; mas, se frusta, o direito não chega a constituir-se... Se o feto não vem a termo, ou se não nasce vivo, a relação de direito se não chega a formar..." (grifei). O que Caio Mário da Silva Pereira não explicou é o que seria um direito em estado potencial. Ou há direito, e o direito é; ou não o há, e pouco importa se ele pode ou não se formar, porque ele não é.

§ 43. - É preciso se entender que o conceito jurídico de nascituro tem relevo jurídico quando a concepção biológica do feto se deu no tempo em que se apurava quem era o titular do direito. Portanto, o direito subjetivo já existe, mas com a perda de seu titular, busca-se saber quem lho sucedeu. Ora, em se tratando de relação intra-jurídica ou eficacial, a lei tem ampla liberdade de dispor do modo que lhe aprouver; não assim quando se tratar de relações jurídicas básicas, pois sempre que houver sucessão de termo ou pólo, necessariamente se há de entender que se constituiu outra relação jurídica que fixou sem átomo de tempo (Pontes de Miranda, ob.cit., p.121). Resta saber quem compõe o pólo da nova relação. O herdeiro não entra nas relações jurídicas do decujo: entra nos direitos e deveres, porque esses são o que está do lado da relação jurídica, ativo ou passivo. Nas relações não se dá substituição de termos sem que se origine outra relação. Vale dizer, cria-se nova relação jurídica básica com o herdeiro, dela constando a relação jurídica eficacial do decujo, com seus direitos, deveres, pretensão, obrigação, ação e exceção. Quanto à eficácia intra-jurídica, a liberdade de concepção do direito é completa (Pontes de Miranda, ob.cit., p.125)

§ 44. - Ora, com o passamento do decujo, transmite-se a herança a seus herdeiros legítimos (art.1.574, 1ª parte, do CCB). Há mudança no termo das relações jurídicas básicas em que o decujo era pólo; de conseguinte, nova relação jurídica se constitui, com os efeitos das anteriores, de acordo com a lei (ou testamento). Mas se houver nascituro? Como ele não é pessoa, não ingressa como sujeito de relação jurídica básica. Portanto, houve transmissão do direito, mas ainda não surte efeitos quanto ao sujeito, porque ainda não se sabe quem é, -- se o nascituro; se outrem. Pode bem ser que haja dois ou mais nascituros, só um dos quais possa vir a ser reconhecido como titular. A ignorância é nossa, por desconhecermos fatos presentes (se o nascituro nascerá com vida). Mas para o direito, do ponto de vista lógico, inexiste indeterminação (Pontes de Miranda, ob.cit., p.169). Inexiste, pois, direito em potência. Há o direito, posto que haja indeterminação momentânea do seu titular. Como ensina o sempre insuficientemente citado Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado, tomo I, p.178), "O nascituro, esse, já concebido, ainda não nasceu, porém o fato de já estar em formação, de já se ter de esperar, obriga a técnica legislativa a inclui-lo em suportes fácticos de fatos jurídicos de que irradiam direito, pretensões, ações, exceções. Como? Entra eles nesses suportes fácticos como elementos de alternação [nasciturus ou A] ou, se há dois nascituros, ou mais, que devam ser contemplados, ou preferente mente um deles, [nasciturus + nasciturus ou A], ou [nasciturus, ou A]. O direito -- ou, melhor, a relação jurídica - não é sem o primeiro termo; o que se dá é que o primeiro termo é alternativo" (grifei). Portanto, "no intervalo entre a concepção e o nascimento, os direitos, que se constituíram, tem sujeito, apenas não se sabe qual seja" (ob.cit, p.179).

§ 45. - A Fundação não-personificada resultou do negócio jurídico unilateral, ou da lei, mas sem obter ainda sua personificação. Portanto, há patrimônio e há destinação dele a um fim. Mas não há capacidade de direito, o que não aparta o patrimônio de seu titular, posto que se ponha em relevo sua finalidade, a separá-lo, de certo modo, dos outros bens do instituidor. Havendo, como há, ato constitutivo -- ainda não registrado --, já se indicou o nome, a sede, o fim, a administração e apresentação, a reformabilidade do estatuto, a maneira de sua extinção, o destino do patrimônio, etc. Quid juris se alguém doa seus bens, ou parte deles, para a fundação in fieri? Em primeiro lugar, de logo fique assentado que a falta de capacidade de adquirir da fundação não-personificada, em seu próprio nome, é absoluta. Sem embargo, além do art 24 do CCB, que permite a destinação de bens para se criar uma fundação (que não é doação, como já o dissemos), há normas que podem induzir a aquisição por parte dos entes não-personificados (art. 1.669 ou 1.664 do CCB, v.g.). Mas há de se entender, que se beneficiou o instituidor, se outra coisa não se dispôs no ato concessivo da vantagem. É bem verdade que, nesse caso, os bens hão de se ajuntar aos separados pelo próprio fundador, ganhando a mesma finalidade que o ato constitutivo lhe conferiu (mais ou menos nesse sentido, Pontes de Miranda, ob.cit., p. 337).

§ 46. - A fundação não-personificada, à semelhança do nascituro, não pode ser, antes de sua personificação, sujeito de direito. Por isso, havendo a oferta de doação (negócio jurídico unilateral receptício), indaga-se da possibilidade de a fundação in fieri aceitar os bens doados. O art. 1.169 do CCB dispõe ser válida a doação feita ao nascituro, dês que aceita pelos pais. Naturalmente que, em casos que tais, o termo da relação jurídica básica é alternativo, pois se o nascituro nascer morto, doação não houve. Do mesmo modo, entendemos que pode ser feita oferta de doação à fundação in fieri. Entrementes, a aceitação não surtirá efeito se for feita pelo instituidor. Necessário personificá-la para que possa ser exercido o direito formativo gerador de aceitação.

§ 47. Ora, se nós chegamos à conclusão da impossibilidade jurídica de doação de bens à fundação não-personificada, como interpretar a lei que admite a participação de recursos privados na constituição da Fundação? Cabe-nos lembrar que o particular poderia doar seus bens com encargo (doação modal), ou seja, exigir que o donatário utilize o produto da doação em algo bem definido: a personificação da fundação. Ou por outro giro, bem poderia doar ao instituidor, subordinando seus efeitos à personificação da fundação (cf. Arnaldo Marmitt, Doação, Aide, p.28 e 38). Todavia, há inúmeros casos em que a solução é mais bem elaborada, tornando sem muita importância a questão da falta de personificação jurídica da donatária: quando a oferta de doação e sua aceitação são feitas por escritura pública, em negócio jurídico bilateral -- quanto a origem apenas, porque quanto aos efeitos, a doação é unilateral, tendo, como termos da relação jurídica básica, a Administração instituidora (donatária) e o particular (doador). Doação esta modal, porquanto o produto da liberalidade é para a participação na constituição do Fundo Patrimonial da Fundação, consoante se vê a cotio nas escrituras públicas de instituição de fundação. Assim, o ato fundacional pode vir encartado no negócio jurídico bilateral de doação. Como ensina Pontes de Miranda (ob.cit., tomo I. p.457), "O negócio jurídico fundacional pode estar contido em negócio jurídico bilateral, inclusive contrato, porém, mesmo assim, não perde a sua natureza de negócio jurídico unilateral e não receptício". Vale dizer, que a Administração aceita receber a doação dos bens da iniciativa privada, admitindo, obrigatoriamente, a dotação de 1/3 (um terço) do patrimônio da novel fundação com capital privado.


IV - As Fundações Públicas e a Lei Federal nº 7.569/87.


§ 48. - Se a Lei Federal nº 7.569/87 já havia imiscuído as Fundações Públicas (de direito público ou de direito privado) entre as entidades que formam a Administração Indireta, a Constituição Federal de 1988 confirmou esse propósito, vincando uma série de normas relacionadas com as fundações. Em primeiro lugar, dedicou-lhe, juntamente com toda a Administração Pública, o art.37, preceituando que a Administração Fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados e dos Municípios, obedecerá aos princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade (art. 37, caput da CF/88). Mas além desses princípios, as Fundações deverão obedecer ao seguinte: a) a investidura em cargo ou emprego depende de aprovação prévia em concurso público (inc.II); b) limite máximo de remuneração fixado em lei (inc.XI); c) vedada a percepção de acréscimo pecuniários sob o mesmo titulo ou idêntico fundamento (inc.XIV); d) vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, a de dois cargos de professor ou a de um cargo de professor com outro técnico ou científico (inc.XVI e XVII); e) somente por lei poderão ser criadas fundações públicas (inc.XIX); f) depende de autorização legislativa, em cada caso, a criação de subsidiária das entidades mencionadas no inciso anterior, assim como a participação de qualquer delas em empresa privada (inc.XX); g) seus contratos devem ser precedidos de licitação (inc.XXI).

§ 49. - O art. 39, caput, da CF/88 determina que as fundações públicas possuam regime jurídico único e planos de carreira, instituídos pela autonomia que as criou. Tal artigo constitucional poderia induzir a interpretar que a Constituição Federal apenas admitisse a existência de Fundações Públicas com personalidade de direito público. Porém, o § 1º do art. 173 da CF/88 põe fim às dúvidas, eis que admite, juntamente com as economia mista e empresas públicas, a existência de outras entidades que explorem atividade econômica. E como é ressabido, tanto a educação, como a saúde, podem ser formas de atividade econômica, exploradas pela iniciativa privada (arts. 199 e 209 da CF/88); ou pelo Poder Público, através de suas paraestatais.

§ 50. - Como as economias mistas e as empresas públicas, as Fundações Públicas com personalidade de direito privado não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado (art. 173, § 2º. da CF/88). Sem embargo, quer com personalidade de direito privado, quer de direito público, incidem sobre as Fundações Públicas o art. 71, inc.II e III; art. 163, inc.II; 165, § 5º; e 169, todos da CF/88.

§ 51. Convém dizer, com Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito Administrativo, p.324 e segts), que as fundações públicas, embora definidas como pessoas de direito privado, passaram a ter, na esfera federal, a partir da Lei nº 7.596/87, a natureza jurídica predominantemente pública. A elas não se aplicam as normas civilistas sobre o destino dos bens doados pelo instituidor quando insuficientes para constituir a fundação; sobre o controle e fiscalização exercidos pelo Ministério Público; sobre a elaboração e alteração dos estatutos; e sobre a extinção da entidade. Com a personalidade de direito privado, embora não sendo regida pelo Código Civil, a Fundação Pública tem os bens penhoráveis, não se lhe aplicando o processo de execução contra a Fazenda Pública; não têm juízo privativo; o regime de seus empregados é o da CLT. Como afirma corretamente Maria Sylvia Zanella Di Pietro, "quando a Administração Pública cria fundação de direito privado, ela se submete ao direito comum em tudo aquilo que não for expressamente derrogado por normas de direito público, podendo essas ordinárias e complementares federais e da própria lei singular, que instituiu a entidade. Na esfera estadual [e também municipal, dizemos], somente são cabíveis as derrogações que tenham fundamento na Constituição e nas leis federais, já que os Estados [e municípios, acrescentamos], não podendo legislar sobre direito civil, não podem estabelecer normas que o derroguem" (grifei).


V - À Guisa de Conclusão.


§ 52. - Espero humildemente possam essa reflexões, ainda que superficiais, colaborar com os estudiosos para um tratamento jurídico mais consentâneo dedicado às Fundações Públicas, as quais andam carentes de um estudo mais rotundo sobre sua natureza jurídica e implicações concretas trazidas pela novel Carta Constitucional. Os que têm versado sobre a matéria, em grande escala, o fazem com vista a problemas concretos, tópicos, quando da emissão de algum parecer jurídico. Embora tais manifestações tenham sido importantes para o estudo, no Brasil, das Fundações Públicas, a verdade é que a visão específica e unilateral que expõem por vezes mais empanam do que auxiliam na meditação do atualíssimo tema. É necessário, portanto, que a comunidade jurídica passe a repensar o já pensado, desbravando as imensas possibilidades abertas pela Constituição de 1988.


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